10.12.07

cartograma#103 - baudelaire

"Vocês sabem que eu não me divirto nada lá em casa; nunca me levam ao espetáculo; meu tutor é avarento demais; Deus não liga para mim e para o meu tédio, e não tenho uma empregada bonita para me mimar. Muitas vezes me pareceu que meu prazer seria andar sempre em frente, sem saber para onde, sem que ninguém se preocupasse, e ver sempre novas terras. Nunca estou bem em lugar nenhum, e sempre acho que estaria melhor onde não estou. Pois bem! Eu vi, na última feira da vila vizinha, três homens que vivem como eu gostaria de viver. Quanto a vocês, não prestaram atenção neles. Eram altos, quase negros e muito altivos, mesmo que em andrajos, com jeito de não precisarem de ninguém. Seus grandes olhos escuros tornaram-se absolutamente brilhantes enquanto tocavam música; uma música tão surpreendente que dá vontade ora de dançar, ora de chorar, ou as duas coisas ao mesmo tempo, e enlouqueceríamos se os escutássemos por muito tempo. Um deles, arrastando o arco do violino, parecia contar uma aflição; e o outro, fazendo saltitar seu martelinho nas cordas de um pequeno piano pendurado em seu pescoço com uma correia, parecia zombar do lamento do seu companheiro, enquanto o terceiro batia de quando em vez seus címbalos com uma violência extraordinária. Estavam tão satisfeitos consigo mesmos que continuaram tocando sua música de selvagens mesmo depois que a multidão se dispersou. Enfim, juntaram seus tostões, tomaram sua bagagem nas costas e foram embora. Eu, querendo saber onde moravam, os segui de longe, até a beira da floresta, onde só então entendi que não moravam em lugar nenhum."

Trecho de "As Vocações", em Pequenos Poemas em Prosa, Ed. Hedra, p.179.

26.11.07

cartograma#102


da série memórias com m maiúsculo:
reunião (firmeza) de negócios no Forte de Santa Teresa, Uruguai.

este, Índio, Leitone e Grandão, traficantes de absinto.

cartograma#101 - arnaldo antunes

O tato

O olho enxerga o que deseja e o que não
Ouvido ouve o que deseja e o que não
O pinto duro pulsa forte como um coração
Trepar é o melhor remédio pra tesão
Um terço é muita penitência pra masturbação
A grávida não tem saudades da menstruação
Se não consegue fazer sexo vê televisão
Manteiga não se usa apenas pra passar no pão
Boceta não é cu mas ambos são palavrão
Gozo não significa ejaculação
O tato mais experiente é a palma da mão

O olho enxerga o que deseja e o que não
Ouvido ouve o que deseja e o que não
Depois de ejacular espera por outra ereção
O ânus precisa de mais lubrificação
Por mais que se reprima nunca seca a secreção
O corpo não é templo, casa nem prisão
Uns comem outros fodem uns cometem outros dão
Por graça por esporte ou tara por amor ou não
Velocidade se controla com respiração
O pau se aprofunda mais conforme a posição
O tato mais experiente é a palma da mão

17.11.07

cartograma#100

cartograma#99

por quê lavar roupa com meu nome?
meu nome não é sabão.

16.11.07

cartograma#98 - joão cabral de melo neto

Cãos sem Plumas
IV - Discurso do Capibaribe

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.

Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).

6.10.07

cartograma#97 - cláudio paiva

não confio no governo,
não confio na oposição,
não confio na política,
não confio na polícia,
não confio na igreja,
não confio na imprensa,
nem na minha mãe eu confio.

uma mulher que teve um filho como eu não merece confiança.

cartograma#96 - coleção de frases sobre fumar

  1. Fumar é, antes de tudo, fazer mal a si mesmo e aos mais próximos.

2. “O mundo é o meu cinzeiro”

  1. “Das 20 pessoas mais velhas dos EUA, 14 ainda fumam ou fumaram por mais de 50 anos.”

3. Fumar é a manifestação derradeira individualidade auto-sacrificada.

É a escravidão libertária.

A solidariedade dos fumantes é resignada e contemplativa.

A solidariedade dos fumantes masca em tragadas

Agentes cancerígenos vestidos de branco bailando no espaço

Engravidam o ar de morte.

1. Através do ato mecânico de fumar, parodiamos a mecanização dos

gestos da vida.

3. Fumar é uma dança repetitiva solitária.

A masturbação também.

Lavar a louça também

Paulinho da viola concerta relógios e compôs a dança da solidão.

  1. A vida nos parece bem pior sem os anúncios de cigarro.
  1. Fumar é uma gagueira zen:
  2. numa carteira
  3. vinte avisos de que a morte vem.

  1. Antes das Américas, não havia tabaco. Os Nativos das Américas nos deixaram como herança, como presente de agradecimento aos europeus e descendentes, o cultivo do tabaco.

Os povos americanos nos civilizaram postumamente, portanto.

Antes do verbo emprestado do francês, “fumer”, usava-se a expressão“Beber fumaça”.



extraído de http://foimaus.wordpress.com/
- blog de maurício o. krebs.

cartograma#95

da série memórias com m maiúsculo:
Céu na Terra, a anjinha e o menos pornográfico dos atos públicos.

cartograma#94 - suvaco de cobra

da série memórias com m maiúsculo:
reunião (firmeza) de negócios no Tubarão de Sunga, praia da Armação, SC.
dia da megafusão Arranca Toco e Suvaco de Cobra.
Léo Guaíba, Pêra, Matteo, Leitone, Carlinho Maluco, Julio, este e Jonatha, cartolas.

cartograma#93 - 9 temas (ou) tema de casa

1. introdução: para uma política do presente – para produzir no presente, construir nossos territórios de discernimento no presente; saber de suas condições de uso, de suas regras, de suas distribuições de espaço, tempo, grana, sarro; saber das suas distribuições de afeto e pensamento; saber da economia dos corpos. para produzir a anarquia no presente, saber também das suas esfinges. o primeiro eixo temático trata de uma introdução ao tema do anarquismo no presente, bem como de uma análise da geopolítica contemporânea, focando principalmente os aparelhos de captura do capital globalizado, suas ligações com a função-Estado e as novas formas de produção econômica.

2. para uma estória do movimento anarquista – contribuições dos clássicos à anarquia no presente, assim como análise das condições de emergência de um movimento anarquista na história. acertos e erros à luz da atualidade; ecos aos que triunfaram, flores aos que falharam. entre os cânones e os marginais, o trajeto destas idéias oblíquas que apontam estória geral das anarquias.

3. zonas autônomas temporárias: políticas da deserção – opor a deserção ao engajamento; ou, pelo menos, propor a deserção como engajamento específico. esvaziar os espaços do Poder, trazendo ao cotidiano a questão da autonomia temporária em quaisquer dos âmbitos onde possa ser exercida. a revolta e o levante substituem a revolução como horizonte sem foco. a iminência parda de Hakim Bey apresenta novas modalidades para o tráfico libertário de informações e afetos, pirataria política.

4. terrorismo poético e outros crimes exemplares: fábulas e situações – ainda Hakim Bey, ecoando as derivas e psicogeografias situacionistas, apresenta novas modalidades de intervenção contra a mesmice da existência. nos manifestos e panfletos de seu anarquismo ontológico, o fabuloso mundo das disciplinas e da moralidade sã, seja ela de direita ou de esquerda, é motivo de escárnio e riso; o cotidiano rotineiro será sua vítima.

5. materialismo hedonista: políticas do prazer – o uso do corpo e dos sentidos, principal ferramenta na revolução do hedonista. se Michel Serres nos mostra a importância da pele, o mais profundo de nós mesmos, Michel Onfray a desdobra em ferramenta libertária quando revela uma instigante galeria hedonista margeando a história oficial da filosofia. nesta galeria, saber, poder e prazer não podem ser entendidos separadamente.

6. anarquismo somático: políticas da paixão – dentre os poucos que conseguiram a façanha da expulsão tanto da sociedade psicanalítica quanto do partido comunista, Reich aparece como um pensador libertário. atualizado por Roberto Freire, em cruzamentos com a psicologia da gestalt, a antipsiquiatria e a capoeira angola, as idéias reichianas apontam para uma anarquia ligada às energias vitais que percorrem cada corpo singular em seu presente, trazendo o amor e o orgasmo como principais dinamizadores políticos.

7. escultura de si: políticas do corpo – tomar o cuidado de si como escultura de si, produção de um corpo preocupado não somente com a funcionalidade da carne, mas também com a existência como o encadear de instantes sublimes. Michel Onfray retoma a figura do Condottiere para falar da moral estética, da existência como obra de arte que transfigura a vida em cada instante com suas provas de abundância e seus desejos de eternidade.

8. o único e sua propriedade: políticas da solidão – contra as massas e seu caráter unificador, Max Stirner elegeu o único, solitário em sua potência, radical em seus princípios. considerado precursor do pensamento de Nietzsche, a quem acusam de tê-lo plagiado, Stirner é um anarco-individualista que leva ao extremo a alternativa filosófica do egoísmo. autor de um único livro arrasado por Marx em 300 de suas páginas, Stirner foi relegado à margem da história. não existem fotos suas; anarquia explosiva de um infame.

9. celebração do gás lacrimogênio: desobediências e rebeldias – a lei, o direito, os direitos, todo o sistema burocrático e parasita, seus aparatos materiais e ideológicos; a grana, o a-mais, a extorsão sempre renovada na avidez da burguesia; tudo aquilo cujo principal objetivo sempre será tanto a eficácia produtiva quanto a docilidade política. desobedecer, rebelar, romper os limites do agradável; o uso da agressividade e da violência dentro do sistema.

cartograma#92 - manifesto solícito

Manifesto solícito: Anarquize!

Acumulamos anos de aprendizado com o capitalismo burguês e com o comunismo burocrático; erguemos grandes edifícios pela sua contra-indicação. Os novos ventos de uma terceira via transversal anunciam a pior das fusões: momento onde finalmente as duas faces da grande-política do último século viram uma só estátua na constância do Poder. A militância virou ato de redundância; a crítica está abarrotada. O último fracasso da esquerda brasileira terá sido a eleição do palhaço Peri, aquele que articulava nossas esperanças de transe e riso desde 82. Pergunta-se: quê fazer da resistência? Contra aquela espécie de maçonaria capitalista, mas também contra a tristeza militante, é preciso reinventar no cotidiano a prática dissidente, uma nova postura; novas formas de re-existir. Re-conhecer a potência libertária de nossos atos para então re-fundar, senão nossa mística de esquerda, pelo menos outras formas de resistência sinistra, de potência canhota. Re-articular nosso corpo para re-fazer o cotidiano através dos bandos e coletivos.

Além da vertigem capitalista e da tristeza militante, seus horizontes sem foco, é necessária nossa anarquia como problema prático, política do cotidiano, tracejado à liberdade e ao prazer de viver uma existência em sua originalidade, articulando liberdade pessoal e alteridade numa atitude presente. Acompanhando o que manifestam alguns de nossos atuais cúmplices, ali onde revelam a possibilidade de evocarmos a vida em cada um dos seus instantes, podemos furtá-los. Mesmo que sempre seja ocasião para rever os clássicos, será preciso acompanhar os cúmplices do presente, articular os corpos vivos para uma anarquia presente que articule sensibilidade, pensamento e prática.

Hoje em dia, entre as alegrias do marketing e a licenciosidade da mídia, através de êxtases e espasmos sofridos com os leves choques telemáticos e cibernéticos dos suportes pós-industriais, desliza então nossa atenção para a estupidez da vida, principal produto burguês. No shopping center burguês, entre as promoções de identidades e de seus suportes correspondentes, num movimento às vezes controlado e estudado, outras tantas frenético e desavisado, vamos acoplando e encaixando a força do desejo como força a serviço do próprio sistema, compondo a grande Máquina e traficando senhas e cifras sob o guarda-chuva das grandes redes. Nosso prêmio será um tostão no juízo final, e diploma de bem comportado; viveremos a vida mais ordinária possível.

No caráter bem comportado está ligada nossa idéia de boa educação, aquilo pelo quê perdemos a vida; é nossa marola bem sucedida, nossos talheres bem dispostos, intervenções cirúrgicas, jaquetas metálicas e estofados sintéticos, nosso cotidiano ciborgue: estranha forma de gostar da vida como instância da imagem e do dinheiro, lubrificada pelo néctar azedo servido por atendentes mestiços, mistura de sangue, suor e coquetéis híbridos. O bem comportado é aquele que congrega na grande roda da fortuna, mantém seus ritos e disposições, neste conjunto ele percebe e apresenta a única iniciativa inclusiva: tudo tende à Máquina.

Resistir: re-existir.

Um laboratório de liberdades, de atitudes riscadas em giz sobre as aparências lisas do cotidiano, existindo no tempo através dos novos enlaces entre sensibilidades e tradução, forjando na experiência a produção da Novidade. A densidade de uma máquina de guerra não estará somente nas linhas de fuga percorridas no Caos, o Corpo pleno da Terra, Força única, mas também em sua re-estabilização num conjunto de linhas flexíveis tecidas entre-as-redes da Máquina, conhecimento e desconhecimento, des-conhecer. A resistência transpassa a permanência tanto quanto reorganiza linhas flexíveis que negociam a realidade positivamente, genealogia de quedas tanto quanto apologia da produção e da vontade. Dupla face do Caos, abismos e verdades. O trabalho transversal da resistência aos eixos verticais que fundam a caretice dos axiomas e rotinas finais vai tanto destroçá-los quanto integrar as abruptas emoções com uma nova e cotidiana consciência, processo que percorre eixos também envergados, anômalos, ganhando velocidade entre as duas faces do Caos, levante e lucidez.

cartograma#90 - cartografar

Contra o anacronismo dos métodos, o rigor da criação: o rigor de uma abertura nos limites do pleno, mas sem ultrapassá-los, isso porque é necessário amanhecer um pouco si mesmo para então voltar ao presente a sentir a preguiça ou a vertigem de porvir. Teu pensamento é movimento, tua escrita é como uma tatuagem que redesenhas constantemente, que recobre todo teu corpo, dentro e fora, e verte pelo mundo. Tatuagem do homem no mundo, tatuagem do mundo no homem. Conjunto de traços que redesenha teu instante desde um âmago intenso até o final das cadeias extensivas e vice-versa, traços que recobrem e ligam célula a um horizonte de proximidades e distâncias, que prolifera entre tudo o que percorre estes limiares na passagem de um tempo nada convencional. A cada manhã, mal te conheces, espelho de difrações. Acorda! Cartografa: o mais profundo é a pele, mas ela não te pertence mais. Explora na alegria de uma nova manhã outro tanto de uma possível biografia para, ao grande de sol de meio-dia, redigir outro parágrafo da tua autobiografia. Um bloco, diagramas, cartogramas: como aforismos, condensam a riqueza de um instante fugidio; ficam ou passam, mistérios da impermanência. Redigir sua autobiografia não é questão de celebridade: é saber-se entre singulares esquinas, onde aqui faz sol e ali chove, onde um calor mediterrâneo encontra-se com ventos subtropicais. Tuas esquinas, ali onde somente tu poderás contar tuas próprias histórias, cada uma delas como primeira e derradeira. Escrever sobre um estado atual, sobre o si e o mundo em seus limiares de encontro, escrever recriando-os; inventar preciosidades e ecoar virtudes, jogar coisas fora e até praguejar. Como quem recolhe regalos ao longo de um caminho e que, por ter os bolsos sempre cheios à meia-caminhada, vai se desfazendo daquelas formas que a memória já ousa esquecer, marcas que não arroubam para além daquele passo, que não sobreviverão ao intempestivo de outro encontro. Cartografar é encontrar a meio-caminho. A cartografia não tem método, é um caminho ao andar. Não há método, somente uma longa preparação: vira esta página, dobra esta esquina.

cartograma#89 - fragmento, 2004.

No que diz respeito a uma problematização acerca do corpo como objeto de estudo, encontramos Gilles Deleuze e Félix Guattari (s.d., 1996) e seu corpo sem orgãos, interação maquínica e produtiva agenciada em determinado platô da história, segundo suas condições intensivas e políticas. Corpo sem órgãos como suporte de uma estratégia de corporificação que busca produzir modos de vida possíveis desde a condição desejante até a existencialização de territórios; interação de carne, afeto e língua formulada segundo as afecções e matérias de expressão encontradas em determinado plano de consistência.

Michel Foucault, formulando a idéia de sociedades disciplinares e de biopoder para forjar uma explicação sobre o desenvolvimento do modo de vida moderno, também operou este objeto como o de sua eleição, desenvolvendo uma genealogia do corpo e da população. Especialmente em Vigiar e Punir (2002b) e Em Defesa da Sociedade (2002a), Foucault apresenta o entendimento sobre a modulação dos corpos como ecologia produtiva. Na disciplina, evidencia a composição e a colocação destes corpos dentro de regimes de espaço, tempo, ritmo e cadência que buscavam tanto sua docilidade política quanto sua eficiência produtiva como substrato para o funcionamento do sistema social. Adiante, nos conceitos de biopoder e de governamentalidade, evidencia a formulação de estratégias voltadas para o coletivo dos corpos – as populações –, estratégias essas que produziram o entendimento e o gerenciamento do coletivo dos corpos a partir de um investimento em instâncias reguladoras, sejam elas doutrinárias, estatísticas ou institucionais.

No ferramental esquizoanalítico, é o corpo intensivo vertendo para além da organicidade estabelecida, agenciando sempre a composição de novos territórios existenciais; é o corpo sem órgãos como plano produtivo, do estrato orgânico ao afetivo e ao intelectivo, os territórios existenciais constantemente forçados a diferir na violência e no transtorno das marcas intensivas, das intensidades corporais. Para Foucault, é o corpo que produz, no contato com um disperso e difuso jogo das forças, uma interpretação de si no mundo, interpretação essa que busca fornecer as condições para a produção de uma sociabilidade na qual ele poderá inscrever-se.

Em qualquer dos casos, é coincidente a opinião de que o pensamento – ou a episteme – surge para dar conta dos efeitos que se produzem entre os corpos na forma de intensidades afetivas (no primeiro caso) e efeitos de poder (no segundo caso). Michel Onfray (1995, 1999, 2001), na esteira de Friedrich Nietzsche, é ainda mais atroz e evidente acerca desta matéria dinâmica que seria o substrato da vida:

“O corpo já não é o obstáculo que separa o pensamento dele mesmo, aquilo que ele deve superar para conseguir pensar. É, ao contrário, aquilo em que ele mergulha ou deve mergulhar para alcançar o impensado, ou seja, a vida. Não é que o corpo pense, mas, obstinado, teimoso, ele força a pensar o que se furta ao pensamento, a vida. Já não se fará a vida comparecer diante das categorias do pensamento, lançar-se-á o pensamento nas categorias da vida. As categorias da vida são precisamente as atitudes do corpo, suas posturas. ‘Nem mesmo sabemos o que pode um corpo’: em seu sono, em sua embriaguez, em seus esforços e suas resistências. Pensar é aprender o que pode um corpo não-pensante, sua capacidade, suas atitudes ou posturas” (Onfray, 1999, p.96).

Falar de biopolítica é falar deste investimento que se faz sobre as categorias da vida, delimitando e demarcando tanto as posturas do corpo quanto as interpretações acerca da realidade; biopolíticas são as estratégias formuladas coletiva e extensivamente para dar conta da nossa inscrição no mundo. Quando falamos, a propósito do título deste projeto, de estratégias biopolíticas para uma ecologia da resistência, queremos apresentar a possibilidade de uma discussão que acompanhe este investimento sobre as categorias da vida, suas delimitações e demarcações, procurando extrair daí a formulação de uma ecologia que privilegie tanto o ser como potência quanto o real como processo.

Durante minha dissertação de mestrado, tive a oportunidade de propor que tanto o desenvolvimento da ecologia capitalista quanto o desenvolvimento da ecologia comunista, pelo menos enquanto tomaram forma durante o breve século XX, equivocaram-se no tratamento dado a esta fórmula proposta por Onfray. Sobrepondo estratégias unívocas sobre as categorias da vida, tanto a ecologia capitalista quanto a ecologia comunista provocaram uma amarração do corpo militante; promoveram dispositivos de captura e permanência que constantemente anestesiaram a imprevisibilidade necessária a uma ecologia da resistência. Tanto a doutrina de virtude capitalista quanto a doutrina de virtude comunista anestesiaram a potência dos corpos e a processualidade do real, anestesiaram uma ecologia de virtude resistente.

Parto do princípio de que um novo tipo de hegemonia materializa-se entre nossos corpos no espaço-tempo contemporâneo, precipitando a ascensão de uma nova configuração da ecologia produtiva global, a ordem mundial imperial. Império é o nome dado por Michael Hardt e Antonio Negri (2001) a uma nova e complexa articulação entre (1) mecanismos de um mercado global de capitais como ordem econômica mundial, (2) princípios de uma nova constituição de soberania supranacional como ordem política mundial, e (3) estratégias biopolíticas de controle dos corpos como seu modo intensivo e correspondente de corporificação. O Império é o novo modo hegemônico de gestão da vida; a ecologia imperial é a ecologia hegemônica no espaço-tempo contemporâneo.

Sobre o modo de corporificação inerente ao Império, cabe dizer que é a característica mais importante de todas as elencadas. Não é o caso de pensar que as demais características não sejam problemáticas. Esta última, em especial, é como a característica que fornece ao Império seu poder de legitimação, convocando sua autoridade e superestrutura desde os vasos mais capilares da sociedade, desde todos os pontos de onde se produz a própria vida.

É no campo da biopolítica que Negri e Hardt percebem o processo de intensificação dos aparelhos de captura na transição das sociedades disciplinares às sociedades de controle: ao passo que novos sistemas de comunicação, informação e espetáculo articulam-se, acompanhando o declínio das instituições que mediavam as relações sociais, as estratégias imperiais funcionam de forma cada vez mais disseminada e difusa entre o tecido social, acompanhando cada corpo imediatamente dado como alvo e ponto emissor destas estratégias massivas. Esta incidência das estratégias imperiais, uma incidência que funciona efetivamente no âmbito de cada corpo e em todos os momentos, toma a totalidade da vida em seu investimento; a produção imperial tem como principal produto a própria vida, em toda a sua extensão.

Michel Foucault (2002a, 2002b) já havia descoberto nesta instância biopolítica – material e imanente – o substrato que coloca a vida em movimento, acionando então o disparador do pensamento para uma produção ulterior de saberes e verdades, territórios existenciais a partir dos quais afirmamos nossa existência. Da disciplina ao controle, agora com Gilles Deleuze e Félix Guattari (s.d.), e também com Antonio Negri e Michael Hardt (2001), o que vemos é um processo de intensificação desta incidência do Império entre os corpos, gerando as mais variadas formas de anestesia dentro de diversificados e cada vez mais refinados circuitos de captura.

A reflexão sobre a biopolítica aparece, agora, como campo privilegiado. Torna-se cada vez mais necessária a reflexão sobre o corpo como a máquina a partir da qual a vida é posta em movimento, assim como a reflexão sobre como se inscrevem nesta instância os aparelhos de captura que obturam a potência do ser e a processualidade do real, incidindo na produção da vida de forma a bloquear a emergência de uma ecologia da resistência.

Guy Debord (1997) chamou esta ecologia que anestesia o corpo através de sistemas de simulação e estetização de Sociedade do Espetáculo, e podemos mesmo dizer que suas reflexões andam de par em par com as reflexões acerca da sociedade mundial de controle e o Império. Os corpos estão anestesiados em um constante produzir de rituais espetaculares e vazios, sociedade e política simuladas num decalque vazio do mundo.

Se o capitalismo imperial produz corpos modulados em um grande fluxo de inteligência massiva e sobrecodificada, em que medida e com quais estratégias as práticas militantes contra-hegemônicas conseguem ou conseguirão dar conta de uma subversão desta realidade? Pretende-se pensar a militância contra-hegemônica acreditando na possibilidade de um agenciamento voluntarioso das forças de resistência no sentido de diferir desta ecologia nefasta a partir de uma ativação do corpo político, aquele corpo cuja potência é capaz de agenciar outras formas de vida.

Como constatou Gilles Deleuze (1992), o novo arranjo das forças na forma de uma sociedade mundial de controle – o Império sem exterioridades, a sociedade do espetáculo – precipita nos mais diversos estratos da vida em sociedade severas e reiteradas crises generalizadas; é também a aptidão da militância que está em jogo, é também a militância como modo de vida que apresenta-se como dispositivo em crise.

Frente à crise, faz-se necessário problematizar a militância contra-hegemônica na tentativa de compor novas armas para um combate no presente. Frente à crise, faz-se necessário traçar cartografias das estratégias biopolíticas que emergem tanto de uma ecologia capitalista quanto de uma ecologia comunista, problematizando a relação que cada uma estabeleceu com as categorias da vida. Frente à crise, resgatar uma trajetória militante em contato não somente com as querelas do capital, mas também com outras estratégias capitalísticas de investimento sobre a vida. Frente à crise, tracejar caminhos que podem contribuir na formulação de uma pragmática militante que consiga privilegiar, escutar e dar vazão para o que efetivamente pode o corpo, dar vazão a uma ecologia de resistência ativa em um corpo perceptivo que busque, acima de tudo, afirmar material e imanentemente o ser como potência e o real como processo.

cartograma#87 - meio-fio

Meio-fio.

Meio-fino.

Teço.

Entreteço.

Entristeço.

Procuro o caminho do meio.

Caminho sobre o meio.

Fino, cambaleio sobre o fio.

Magro, permeio.

Esqueço e permaneço.

Meio-dia, o fio é de aço.

Meia-noite, fio de pedra, meio-espaço.

Calçada, calçado, cansaço.

Na ladeira, o fio é um rio.

Riacho.


21.9.07

cartograma#86 - diálogo

( a caminho de casa )

- E se a terra começasse a tremer agora?

- Hm.

- Quê farias?

- Se a terra começasse a tremer agora?

- Sim.

- Terremoto?

- Sim.

- Não sei... dizem que temos que correr para o lugar mais descampado.


- Aqui na cidade? Só tem a praia...

- Ia pra beira do mar, então. É uma hipótese. E tu?


- Eu acho que gostaria de trepar até tudo se acabar.

- Ah, Mone...

- Sério. Eu não ia sair correndo pela cidade. Se tudo é pra se acabar,

então que seja... Fodia gostoso até tudo se acabar, até tudo cair por terra.

- (...)

- Poderia ser a última trepada.

- E se a gente não estivesse junto?

- Não tem graça trepar com a mesma pessoa a vida toda. É como

conversar... chega uma hora em que a conversa fica sempre na mesma,

ou gira sobre os mesmos assuntos. Por mim, se eu fosse morrer agora,

trepava com o primeiro cara charmoso que aparecesse,

ou até nem tão charmoso assim.

Não perderia a certeza da minha última trepada

pela possibilidade de trepar contigo.

- Sinceridade.

- Te mentiria por quê? Teu pau é bom, mas não é de ouro.

- Então tu arriscarias de não salvar tua vida por uma boa trepada.

- É de longe a melhor parte da vida. Vale a pena.


- Posso generalizar para qualquer catástrofe natural, então?

- Sim. Foderia em qualquer caso de catástrofe química e natural.


- Não deixa de ser uma filosofia.

- Toda filosofia é um consolo.


- Sexo é um consolo?

- Pode ser.


- Quando?

- Quando vira filosofia.


- Mas a questão era outra...

- Qual?
- E no meio de um tiroteio, bem agora, o que farias?

- Eu já estive em tiroteio.

- Uma bala perdida é sorte ou azar?


- A bala? É a ocasião do tiro.

- E o que define a ocasião do tiro?

- Difícil resumir.

- Mas o quê tu faria?



- (...)

- Eu atiraria também.

- Ah, fala sério!

- Eu tô falando sério... estás rindo de medo.

- Medo do medo do tremor do tiro.

- Ah, Mone...

- Eu só vou pro tiroteio armada.

- Viraste guerrilheira?

- Sempre fui feminista.

- Feminista...

- Morrer trepando compensa. É melhor que morrer de tiro.


- É melhor que morrer dormindo?

- Sempre é.

- Morrer dormindo compensa?


- Aí já depende do sonho.

- E se sonhares comigo?

- Aí é que eu não durmo mais...

cartograma#85 - sem título pt.1.

Fixo o relógio na parede do café: vinte e duas e trinta exato. No último camarote, ao fundo e à esquerda, junto com Mone, uma dose de café e outra de conhaque, abro o lacre do John Player Special preto, derradeiro desejo. É uma noite de pouco movimento, segunda-feira pós feriado, meia estação, baixa temporada e ainda esta chuva leve e insistente molhando de pingos os passantes e as calçadas. Café Trindade, no Centro antigo, um ponto de descanso. Temos bons motivos e uma longa noite pela frente.

O garçom serviu meu conhaque e voltou a uma das banquetas que margeiam o balcão, na entrada do café; daqui, sinto seu respirar sonolento. Demonstra um interesse vago nos últimos resultados do futebol que passam no Esporte do canal 10, a tevê ligada sem som. O outro, cara de dono do café, o ‘Doutor Trindade’, barba farta e grisalha, carecando, em pé atrás da caixa. Ele tem cara de alvi-negro, está sempre atento. Dois camarotes ocupados de quatro no total. A tiazinha comendo uma salada de frutas com sorvete de frutas, talvez a ceia da insônia; e o casalzinho romântico. Ele chegou primeiro e trouxe flores.

Fumo meu John Player enquanto começo a matar a morte. Junto dela, a minha Mone... loucos dias desde então. Pouso minha atenção nela, branco sobre branco, túnica e calça de linho, sandálias brancas, pernas cruzadas para fora da mesa. Fez os pés, sem esmalte, como eu gosto. Quando lhe telefonei durante a tarde, disse que raspara à brasileirinha. Veio cheirosa de perfumes e cremes. Quando a busquei em casa, no início da noite, tinha os cabelos castanhos molhados, e veio com uma bolsa pequena, um cacho de uvas e um baseado aceso. Ainda sinto seu cheiro daqui, depois de toda a muralha de baseados, cigarros, cafés e conhaques. Um perfume ágil que a deixa especialmente encantadora, mesmo que especialmente traiçoeira: entrou no carro e me deu um beijo de batom no canto da boca e logo outro bem marcado na lapela da camisa branca. À noite, como sempre, deve estar sem calcinha ou sutiã...

-Oi?

-Disse que depois vamos dançar.

-Sim.

-Ouvi comentários de um lugar ótimo. Boa música, boa cozinha, bom cardápio. Bebidas e chás. Quero te levar lá. Um grupo de amigos foi na semana passada e gostou, disse que o ambiente é ótimo e confortável, e que todos são muito gentis e inteligentes. É uma casa antiga atrás do Morro da Anunciação. Não tão difícil de chegar quanto aquela festa que fomos no sábado.

-Bom...(...)

-Amara também ligou. Queria estar conosco hoje de noite. Está de apartamento novo e disse que vai fazer um open house em breve, insistiu muito em nós dois. Parece que tem um deck ótimo no segundo andar, e o pôr-do-sol é lindo da piscina. É uma cobertura, mas ela disse que é bastante discreta. Prepara alguma coisa para a semana que vem, mas se quisermos visitá-la antes, disse que será ótimo retribuir nossa gentileza. Expliquei-lhe que tínhamos planos pra hoje.

-Sim, sim. (...)...ela liga?

-Liga. Disseram-me que a pista é sobre tatamis, ouviste? Que deixamos nossos calçados à porta de entrada e que podemos mesmo dançar à vontade, se quisermos. (...) Quando terminares este cigarro, vamos? Vou pedir a conta. Faremos o caminho da orla e assim sentiremos o cheiro do mar...

-Sim.

-O silêncio não combina com a hora da morte.

-Por quê?

-Porque não faz sentido. Os grandes finais sempre são ruidosos.

-Os finais de quê?

-De tudo. É a grande metáfora da vida.

-A grande metáfora de quê?

-Os grandes finais são ruidosos porque são a metáfora possível da morte.

-(...)

-A morte deve ser agitadíssima.

-Há mortes que acontecem no silêncio.

-Imagine a morte de um motoqueiro no trânsito. Senão juntasse todo aquele povo e fizesse todo aquele barulho, o que ela seria senão um tombo no asfalto? Não é que o povo seja sádico, é a morte que deve ser agitada.

-Há mortes que acontecem no silêncio.

-Nenhuma morte acontece em silêncio. Não há silêncio. É como gozar.

-Nem toda mulher goza gritando.

-Os homens gozam com o pau, não com o corpo. A mulher goza toda.

-E a morte?

-Uma geme ao morrer, não morre em silêncio.

-(...)

-Sem feminismos?

-Sem feminismos, por favor.

Conhecemos Mone numa casa de suíngue há três meses. Ela estava com um cara estranho, um troglodita quinze ou vinte anos mais novo que ela, faixa preta de karatê e psicotrópicos. Ela veio me dizer depois que estavam fazendo experiências com medicação. Mone controlava as receitas. Ele experimentava e depois escrevia tudo em um computador laptop. Era a onda deles. Disse que não trepavam, e acho que realmente não. Era o cara perfeito pra levar numa casa de suíngue. Naquela noite em que a conheci, trepei com ela de quatro por mais de quarenta minutos enquanto o karateca batia uma lenta punheta. Quando gozei e acendi um cigarro, ele veio me apertar a mão a agradecer por tudo com a mão toda suja de porra, -Sai fora! Até uma casa de suíngue tem limites. Tentei deixar pra ele a puta que eu tinha levado mas nem isso. Ela ainda teve que achar um velho careca que tinha deixado a esposa com um garotão todo tatuado, mas acabou que conseguiu extorquir duzentas pratas do velho... enquanto o velho arfava sob ela, tomamos junto duas doses de uísque. Depois, Mone escreveu o telefone dela com caneta BIC no meu pau: -Não fode mais ninguém. Me liga amanhã cedo.

Virou as costas, falou com o karateca e foram embora. Chamei a minha puta de volta, ela me pagou um misto-quente e umas cervejas e fomos pra casa. Gastamos vinte e cinco pratas no rango e nas cervejas, e a entrada da boate custava quinze pra cada. Com duzentos, a puta ainda levava cento e quarenta e cinco pratas pra casa. Era bom pra ela. Desliguei o celular e fodi a puta até amanhecer sobre três notas de cinqüenta mais o troco do lanche, incluisive moedas.

Liguei pra Mone no dia seguinte, às nove horas quase em ponto, de ressaca. A puta saíra às 8 pra levar o filho no colégio. Nos encontramos das seis às nove do dia seguinte, e desde então nos encontramos sempre e mais. Ela é louca: já fodemos em todos os lugares que freqüentamos, públicos e privados.

Beijou-me: -O beijo é o mais pornográfico dos atos públicos.

-Vamos, então?

-Sim.

-E depois?

-Depois, nem tão tarde, podemos dançar.

-(...)

- e depois quero massagear teu corpo todo.

-(...)

-E te comer na piscina.

Fixo o relógio na parede do café. Vinte e duas e quarenta e dois.

–Vamos?

cartograma#84 - sonhei com isso.

"Existe uma terra fantástica, uma terra de promissão, é o que dizem, que eu sonho em visitar com uma velha amiga. Terra singular, imersa nas brumas de nosso norte, e que poderíamos chamar de Oriente do Ocidente, de China da Europa, de tanto que ali se deu asas à quente e caprichosa fantasia, de tanto que ela a ilustrou, paciente e obstinadamente, com suas sábias e delicadas vegetações.

Uma verdadeira terra de promissão, onde tudo é belo, rico, tranqüilo, honesto; onde o luxo sente prazer em mirar-se na ordem; onde a vida é gorda e doce de respirar; de onde a desordem, a turbulência e o imprevisto estão excluídos; onde a felicidade está casada com o silêncio; onde a própria comida é poética, gordurosa e excitante a um só tempo.

Você conhece esta doença febril que toma conta de nós nas frias misérias, esta nostalgia da terra que ignoramos, esta angústia da curiosidade? Existe uma região que se parece com você, onde tudo é belo, rico, tranqüilo e honesto, onde a fantasia construiu e decorou uma China ocidental, onde a vida é doce de se respirar, onde a felicidade está casada com o silêncio. É lá que é preciso ir viver, é lá que é preciso ir morrer!

Sim, é lá que é preciso ir respirar, sonhar e alongar as horas pelo infinito das sensações.

(...)

Uma verdadeira terra de promissão, estou dizendo, onde tudo é rico, limpo e luzente, como uma bela consciência, como uma magnífica bateria de cozinha, como uma esplêndida ourivesaria, como uma jóia salpicada! Ali os tesouros do mundo afluem, como na casa de um homem laborioso e que bem mereceu o mundo inteiro. País singular, superior aos outros, como é a Arte à Natureza, onde esta última é reformada pelo sonho, onde é corrigida, embelezada e refundida.

Que busquem, que busquem ainda, que estendam sem cessar os limites de sua felicidade, estes alquimistas da horticultura! Que proponham prêmios de 70 e 100 mil florins para quem resolver seus ambiciosos problemas! Quanto a mim, encontrei minha tulipa negra e minha dália azul!

(...)

Sonhos! Sempre sonhos! E quanto mais ambiciosa e delicada é a alma, mais sonhos a afastam do possível. Cada homem traz em si sua dose de ópio natural, incessantemente secretada e renovada, e, do nascimento à morte, quantas das horas que contamos são repletas de gozo positivo, de ação bem-sucedida e decidida? Haveremos de viver, de passar algum dia para este quadro que meu espírito pintou, este quadro que se parece com você?"

(C. B.)

17.9.07

cartograma#83 - augusto de campos

1.

Olhar o desmoronamento grande
da tarde e o das palavras gordas
em glaromas de amil e penubis.
Mover a voz, porém como navios
que afundam nágua sua força finda.
Com estas mornas flores de oromãs
morigerantes ou cansadas corças
em remouro, e palmas árvores, mãos,
dispor gestos delgados, delicadas
pendências, breves milagres, contas
de coloraina em tua pele aeromaterna,
e com cuidados-orvalho e penetrando
e com singelos de vidro e penetrando
nesse interregno de tuas coxas

enluernar teu coração de esperma.



"o coração final", pte. 1, da coletânea Poesia 1949-1979.

16.9.07

cartograma#82 - a mosca

a mosca, tosca,
sobrevoa o queijo.

ouça.

a mosca pousa.

satisfaça seu desejo.

cartograma#81 - tempo

o que será o tempo senão (um tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo (dentro dum tempo). senão (um tempo), o quê – que tempo? – será?

26.8.07

cartograma#80 - fluoxetina, por fAABIO pINTO

Escovei os dentes por duas horas seguidas
Ainda sou um menino bem comportado
Que segura as mangas da camiseta pra colocar o casaco
Todas as retas que traço terminam num abismo à esquerda
Meu sexo é tosco mas tenho caráter
Não gosto de aquecedores e nunca andei de avião
O número cinco me dá muita sorte
Quando falo de mim não consigo parar
até revelar um segredo gravíssimo

Ontem esqueci de fazer os temas
Quando falo do campo sempre digo "lá fora"
Meus livros me oprimem e fazem companhia
Dos discos que tenho nenhum quero ouvir
Não tenho dinheiro mas gasto sapato
Não faço a barba mas ando de ônibus
Acredito nos santos mas deus não existe.

cartograma#79 - gentilezas, por fAABIO pINTO

A vítima apresentava várias escoriações e perfurações de bala por todo corpo.
Roberto Carlos tem uma perna mecânica devido a um acidente de trem e ninguém sabe qual delas.
O sofá amarelo onde a vítima estava sentada ficou vermelho de sangue e parecia estar em chamas.
Karen Carpenter morreu de fome.
Abelardo Barbosa velho guerreiro chacrinha anunciava Clara Nunes macumbêra.
Mário Gomes, em turnê pelo Brasil, foi internado às pressas em um hospital, portando uma cenoura entalada no cu.
O pica-pau "pájaro loco" costuma quebrar os ossos, decepar, esmagar e perfurar seus desafetos com um bico afiadíssimo.
A vítima possuia a guarda de um filho que era a cara do pai dela.
Walt Disney foi congelado e Chevy Chase está quase completamente careca.
Dorival Caimy pôs um ventilador em frente à sua poltrona, e com toda razão.
As baleias falam, tem gírias e sujeitos morando em suas barrigas.
Os coalas comem folhas de eucalipto e estão ficando cegos.
A vítima andara pela rua dois dias antes, sem destino, com o pênis de seu agressor na mão.
A vítima mandou consertar o chuveiro por que esquentava demais e lhe queimava a pele com água pelando na noite do crime e essa foi a última coisa que lhe veio à cabeça.
Freddie Mercury nasceu na Tanzânia sob o nome de Frederick Bulsara e submeteu-se à uma lavagem estomacal para livrar-se de uma massa de esperma.
Zacarias era aidético, Oscarito ciumento e Renato Aragão não tem nenhum caráter.
A vítima também não tinha nenhum caráter.
Nove entre dez estrelas usam Lux luxo mas só Omo lava mais branco.
A vítima apresentava garganta, laringe, faringe, estômago e intestinos corroídos por Diabo Verde.
A romizeta era um veículo que possuía uma abertura frontal que lhe dava uma aparência bastante peculiar.
A vítima calçava pantufas verdes parecidas com vitórias-régias.
Tim Maia cheirava cocaína e tocava com a vitória-régia.
Virgulino Ferreira o Lampião teve a sua e as cabeças de seu bando cortadas.
Itamar Assumpção chama suas mulheres de orquídeas.
O dragão é um bicho muito louco que solta fogo pelo nariz, de acordo com a moça da propaganda da Calvin Klein.
De onde menos se espera é que não vem nada mesmo.
Quem fecha os olhos de dia não consegue fechá-los à noite.

cartograma#78 - O.Velha (destaque circunstancial)

Tenho pensado em morar sozinho,em viajar sozinho,dizer as coisas certas sozinho,ir sozinho ao mercado,e comprar um frango assado (para uma pessoa só, um frango assado deve durar várias refeições, se for um frango só é claro, sem polentas), jogar xadrez sozinho, conhecer pessoas sozinhas e convidá-las para uma consulta em grupo, em um dentista qualquer, quando estou só gosto da chuva, e me entusiasmo com ela, desejo falar sozinho, achar um chaveiro de pé-de-coelho sozinho, ser atropelado e posteriormente ser socorrido sozinho, na minha cidade as calçadas são estreitas, para as pessoas caminharem sozinhas, gosto de chegar atrasado sozinho, de ler jornal sozinho, esperar em uma longa fila bancária sozinho e pagar minha pequena conta de luz, mentir sozinho, descobrir algo sozinho e depois ir embora.


cartograma#77 - O.Velha

A MANCHA NA AGENDA DE PAULA
http://www.angelfire.com/vt/theremin/onzeII.html

PAULA SEMPRE FOI MOÇA DE FAMÍLIA
http://www.angelfire.com/vt/theremin/paula.html

O MARAVILHOSO MUNDO MINÚSCULO DE O.VELHA
http://www.angelfire.com/vt/theremin/mundo.html

cartograma#76 - fAABIO pINTO

MANIFESTO SOLÍCITO
Exaltação das vocações mínimas

Finalmente não há mais o que fazer. Dificilmente nos sentiremos confortáveis.
Dormimos em camas de pregos e acordamos cada vez mais cedo.
Produzimos de acordo com nossa exigente mediocridade.
Sempre respondemos "sim" e baixamos a cabeça aos subalternos.
Pedimos que nos pisem nos pés pois não devemos andar eretos.
Não só ficamos contentes como agradecemos efusivamente qualquer tipo de agressão.
Somos atraídos pelo passado e rechaçados pelo futuro. Gostamos de deixar alguma sujeira na cara como suíças ou cavanhaque.
Fazemos o sexo mais contrito de todos os tempos.
Somos felizes e ninguém consegue tirar o sorriso da nossa cara.
Nossa elegância símia está muito próxima da indigência.
Toda farsa é absolutamente bem vinda.
Seja cultivada toda perspectiva irreal ou mística do mundo.
Assumimos nossas limitações. Nossas armas estão à vista de todos.
Somos profissionais, especialistas, palestrantes, sumidades e gênios.
Defendemos a cultura-refresco e a alienação saudável.
Desprezamos qualquer um que se leve muito a sério.
Seremos portanto, os melhores tios do novo século.

cartograma #75 - um e noventa e nove, partes 1 & 2

http://www.angelfire.com/vt/theremin/seis.html
http://www.angelfire.com/vt/theremin/um99.html

imprescindível.
por Maurício O. Krebs.

cartograma#74 - por Milton Colonetti (1999)

Mujeres Ejaculam
...
Amor condusse noi ad una morte.
"Inferno", V, 106
```

uma boa festa termina em tiro. tiro de porra, que fique dito, no colo do útero untado, onde todos os tiros deveriam encontrar seu termo, idealmente. Mulheres também ejaculam. Eu não consigo pensar numa buceta, chamamos de vulva, afinal elas ejaculam, mas não consigo pensar numa vulva canal vagina e todo o conjunto sem imaginá-los molhados, fluídos escorrendo coxa abaixo, ou acima, dependendo da posição. esta, uma boa festa, terminou em tiro.

ela tinha lábios e nariz que me lembravam os D’ela, lábios que me diziam sim, mulheres ejaculam. gozava apertando minhas pernas nas suas, mordendo a fronha do travesseiro, com o rosto virado, e ejaculava, bem mais do que eu.

minha mais remota lembrança pornográfica é um fragmento encontrado no lixo, perto do colégio de primeiro grau, cuidado por freiras, não o lixo sim o colégio. um dos quadros duma página, onde um homem felava uma vulva, encharcada, com um balãozinho de diálogo: "vou colher todo o néctar".

era essa a imagem que eu tinha na cabeça, enquanto minha lépida língua esbofeteava seu clitóris. "vou colher todo o néctar" e comecei a sugar, sorvendo cada gota que descia canal abaixo, e como eram numerosas. mulheres também ejaculam, homens também engolem.

ela encontrou ele caminhando. Era como as pessoas se encontravam nessa época. ele havia se perdido, tempos atrás, seu destacamento. agora era um cavaleiro andante, parzival, depois de ser ferido em waterloo. conservava, untando com óleo, sua lança de legionário, quando marchou ombro a ombro com julio césar, oriente a dentro. chegou às índias ocidentais numa nau portuguesa, depois de resgatarem um tal de robinson na costa africana.

ela, bem, ela sempre vivera ali. fazia parte do ecossistema, uma força telúrica, emanada de algum geiser no interior da mata, do coração das trevas. movia-se como um lince, sem ser percebida, mas deixando todos afoitos com a muda possibilidade [e expectativa] do bote. seu covil era à margem do rio, suas mão tinham manchas de sangue, perenes. Ejaculação mensal, cio ciclotímico. me dê esse cálice, pai.

abdica da visão para obter A Visão. ah, sim, claro, ela tinha olheiras de quem poderia dormir mil anos
shyne shyne

shyne boots of leather

que lhe conferiam polimórficos poderes pentecostais. todas as mães são cegas, nem todas as fauces são rubras. convenhamos, não valia um tostão.

mas ele tinha bagos que poderiam verter semem mil vezes, repovoando, se necessário, todo o planeta. Um acordo tático, entre cavalheiros. afinal, eles ejaculavam.

a primeira coisa que ela observou, confessou depois mediante minucioso interrogatório, fora a calça dele, puída, rasgada, crivada de espinhos, calça de quem não sabe direito onde ir. ele observou seus tênis, um de cada cor, azul e vermelho, em cada pé. tênis de que não sabe onde pisa. mas estavam nus por baixo das peles, e disso ambos tinham consciência, santos imaculados que eram.

por nossa senhora aparecida neguinha dormindo no leito do rio, ele faria qualquer coisa para trocar ejaculações com ela. e nem foi preciso nada mais do que um "oi, vai pra lá?" e duas piscadelas demoníacas, uma voluntária, outra não.

veja bem, não estou dizendo que exista algo de imoral nisso. de forma alguma. Simplesmente foram dois cios que se cruzaram, culpa dos feromonios, do clima, de qualquer fator que independa de suas vontades.

mas a vontade existia, não latente, não não, uma vontade que estava na cara, nos olhos que roubavam a alma, que perscrutavam os movimentos, que imprimiam impressões aos passos, na cadência e no timbre.

o antigo confronto entre homem e besta. um homem ideal, pairando nos objetos que os cercavam, balcão, mesas, bebida engarrafada e máquina de gelo. a besta eram eles, que estivessem na mata não hesitariam em se agarrar no primeiro momento.

se acaba em tiro, este era um duelo, a doze passos, que se contavam regressivamente. sacaram ao mesmo tempo, e se atingiram mutuamente, morrendo simultaneamente. sem proteções, sem paramédicos, como os bons duelos devem ser travados. na verdade era um duelo de justa, uma amazona e um cavaleiro, os dois em carga um contra o outro, duas lanças em punho, triplo falo, duas ejaculações e um ponto de fuga, para a coroa. tomar de assalto o paraíso.

boas festas terminam em morte, duas vítimas entrelaçadas, envoltas num cobertor alvo-rubro, Vênus nascida da espuma sangrenta do caralho decepado de Urano.

basta de metáforas.

Um Homem.
Uma Mulher.
Uma Cama.

o resto são conjecturas que deixo para os filisteus.

12.8.07

cartograma#72 - onfray-freire

À margem do racionalismo puro ou aplicado, território da Razão suficiente, Michel Onfray constrói janelas que permitem uma imersão no materialismo. Diferente do tema do corpo tecno-científico, objeto tomado como dogmático e previsível, fala do corpo sensível que depõe contra a claustrofobia da Idéia como instância privilegiada; fala de um corpo mergulhado no mundo que, ao invés de percebê-lo de fora, amputado ou secundário, dele participa radicalmente, que afeta e é afetado, dando movimento orgânico às sociedades, às ideologias e às subjetividades sobre os limiares de sua diferenciação biológica original. Diferente de um pensamento que toma o corpo como objeto tecno-científico, o materialismo hedonista está ligado à experiência sempre reaberta do corpo no mundo, ligando no corpo uma sensibilidade compartilhada e uma ideação coletiva, ligando no ser os estratos orgânicos, afetivos e subjetivos; o materialismo hedonista encontra neste corpo limítrofe, em vias de diferenciação, o ponto singular onde articula-se a complexa consistência individual da vida e seus funcionamentos.

Um tal pensamento nos fará redimensionar antigos problemas, dentre eles os problemas que dizem respeito à política tradicional. Quando deixarmos de compreender a política como Governo das sociedades, traremos seu jogo de forças para o cotidiano, instância habitada pelo corpo em suas articulações. No cotidiano, numa intercessão com os problemas colocados por outros cúmplices, o autor vai procurar uma nova dimensão para os nossos problemas políticos tradicionais, chegando à estética da escultura de si como apologia das rebeldias. Contra a proliferação de microfascismos cotidianos, a aposta no indivíduo e sua soberania, a aposta no autogoverno, a aposta na criação cotidiana do modo de vida como obra original e prazerosa: radical estética da existência, gozo de existir.

Em seu A Arte de Ter Prazer, empreende uma arqueologia da filosofia mundana, revelando entre os suntuosos cômodos do grande museu das virtudes filosóficas oficiais o rumor de uma nova galeria marginal: a galeria dos devassos. Desde os cirenaicos, passando pelos gnósticos licenciosos e pelos Irmãos e Irmãs do Livre-Espírito, por Sade, Charles Fourier e La Mettrie, sua galeria marginal chega até contemporâneos como Raoul Vaneigem[1]. O crivo de seu projeto está preocupado com os interesses oblíquos às corporações régias e burguesas; senão com os interesses oblíquos, com as atitudes de real e cotidiano afrontamento de sua moral comportada. Os trajetos que nosso intercessor resgata nesta galeria hedonista revelam a história de homens e mulheres que não compreendiam a possibilidade da filosofia sem seus cruzamentos com a insubmissão e o prazer, homens e mulheres para quem os instantes fugidios da sabedoria aconteciam em co-extensão com os instantes culminantes de rebeldia, satisfação e gozo, muitas vezes com os instantes radicais de insubordinação, amoralidade ou crime.

Trazer esta galeria marginal ao museu das virtudes filosóficas oficiais acaba por revelar que uma história comportada da filosofia é somente outra de suas estórias mal contadas ou contadas à metade. Apresentada num longo texto em papel timbrado, uma história comportada da filosofia está permeada por todo um procedimento meticuloso que procurou marcar suas partes mundanas sob o signo da destemperança, revelando frente a este negativo monstruoso a possibilidade de uma única luminosidade ascética. Na história comportada da filosofia, o corpo passa a ser carne maculada por nossa condição demasiado humana; os usos do corpo estão submetidos aos registros da negação, da sujeição e do silenciamento das paixões através de diferentes formas de transcendentalismo e idealismo; além disso, toda e qualquer virtude dissidente deve ser abolida em favor de contratualidades consensuais. O projeto de uma arqueologia da filosofia mundana fará com que todos estes tipos sórdidos ressurjam como um rumor no buraco negro da memória oficial, fará aparecer toda sorte de tipos transtornados exercendo uma filosofia limítrofe, radical e explosiva, em nada hedonista se não trouxer momentos de rebeldia, transe e gozo.

Uma arqueologia da filosofia mundana confunde-se com as estórias de arrebatamento que consegue suscitar, ali onde toda crítica vem numa nova sensação, numa nova posição radical; ali onde toda nova intuição servirá de nova charada às esfinges, propondo cenários que aparecem-lhes como irresponsáveis, egoístas ou mentirosos, delirantes ou obscenos. Propondo-lhe um corpo rebelde que nega toda forma de sacrifício para fazer de si mesmo uma obra de arte.

Cada um a seu modo, ignorando os axiomas de rigor e os tratados da boa educação, os hedonistas entregam-se ao exercício de uma filosofia dedicada à composição de instantes sublimes, onde a vida afirme sua potência no inusitado dos acontecimentos prazerosos; ele sobretudo deseja os acontecimentos prazerosos. Se o desejo indica tão somente a ubiqüidade produtiva do tempo, a fluidez das passagens, o hedonista não se contentará somente com desejar; mesmo que entenda a vida em sua infinita mutação e seu exercício cotidiano como constante aceleração, ele não abrirá mão de seus cristais de gozo, de suas experiências culminantes de autonomia temporária, bem como de todo o langor aí proporcionado. De outro modo, se a crítica deverá ser investida com uma índole de sacrifício, o bloqueio destas experiências culminantes, então o hedonista fará tudo menos uma crítica; ele será o ator da poética, do escárnio e da gargalhada entre o encadear dos instantes sublimes. Esta perseverança ímpar no ser como busca dos instantes sublimes é seu ato de resistência ao interesse ascético, civilizatório. O hedonista não deverá somente contar ou descrever grandes cenários, senão tê-los vivido especificamente. Em seu cotidiano, deverá descrever as grandes estórias de suas errâncias, mas também experimentá-las contra todas as estórias de tédio e timidez; tomando o corpo e a vida como instrumentos da experimentação, o filósofo hedonista não deverá somente ler, refletir e escrever, mas também beber o quanto puder[2].

O exercício deste tipo de filosofia normalmente é feito desde a condição de estrangeiro; não raro o hedonista emitiu desde calabouços e prisões, em meio ao calor das fogueiras ou à correria das perseguições; não raro desde dentro dos catálogos psiquiátricos ou arrebatado pela loucura no interior das instituições de tutela. Seus excessos são criticados até por alguns cúmplices. Mas o hedonista será, antes e sempre, um solitário; mesmo entre cúmplices, sua solidão-sem-mágoa[3] mostrará que sobre cada um dos instantes de si mesmo estará comprimida toda a consistência do mundo, e que seu corpo é um conjunto de tensões e articulações sempre em vias de explosão; o hedonista é sobretudo um artista destas energias que atravessam o corpo, um estrategista das formas em estado nascente, um domador da vontade que procura transpor todos os limites que impedem que sua radical individualidade produza toda uma existência como obra de arte instantânea. Para o hedonista, só será possível a dignidade de rasgar os limites que protegem a vida dos inusitados encontros com a felicidade genuína quando tivermos o hábito de dar forma de arte à vida; engana-se quem pensa que este hábito não é um exercício prazeroso, o corpo como escultura hedonista de si, monumento ao instante[4].

Na extensão do projeto de Michel Onfray, contribuindo na composição desta galeria marginal cujos trajetos ele incita a resgatar, podemos encontrar uma filosofia mundana nos únicos de Max Stirner[5], nos harmonianos de Charles Fourier[6], nos corpos-sem-órgãos de Antonin Artaud[7], nos protomutantes de Thomas Hanna[8] e nos piratas e poetas terroristas de Hakim Bey[9]; tantos outros ajudam a formar um extensivo bando de hedonistas cuja experiência marginal, ligada ao temperamento rompante, investe cotidianamente a vida de uma força estética que articula sabedoria filosófica, criatividade, potência política e gozo; articula saber, poder e prazer. O próprio Onfray testemunha seu temperamento radical e hedonista quando escolhe começar seu livros contando estórias pessoais: revelando o momento em que descobriu sua fibra anarquista no ferver do sangue dentro de uma fábrica francesa[10], revelando-se um viajante solitário atrás de grandes e fortes cumplicidades filosóficas[11] ou um corpo dilacerado sentindo a volta da vida em sua carne[12], revelando-se um amante das nuances e excessos da gastronomia[13] e um dedicado sommelier[14]. Além disso, os temas e o próprio estilo de sua escrita testemunham seu jeito ao mesmo tempo rompante e sensível, assim como sua opção pela marginalidade institucional.

Pelo menos um brasileiro também faz jus a esta galeria marginal: Roberto Freire. Desde que redigiu sua autobiografia[15], não mais precisamos procurar em seus inúmeros livros o relato de suas experiências de vida: médico e psicanalista marginal, terapeuta radical, jornalista crítico, romancista, poeta, cineasta e dramaturgo de um cotidiano político, mas acima de tudo um incansável militante que foi sempre redescobindo os sentidos da anarquia em sua vida, e um inveterado boêmio e amante. Roberto Freire que descobriu que sem tesão não há solução no muro de um cemitério[16], que afirmou que a utopia deve ser cheia de paixão[17], que declarou que o vexame de amar é um ato revolucionário[18]; cúmplice que em tudo isso viveu e afirmou a necessidade do prazer e da criatividade como parte da revolução cotidiana.

* * *

Criada por Roberto Freire na década de 70, a SOMA é uma prática anarquista cuja ética supõe tanto as rebeldias quanto o hedonismo como partes da revolução no cotidiano. Seu surgimento deriva de uma pesquisa sobre o desbloqueio da criatividade, realizada no Centro de Estudos Macunaíma, em São Paulo, Brasil. Influenciado principalmente pelas idéias de Wilhelm Reich, de Frederik Perls, de David Cooper, Ronald Laing e demais participantes do movimento da antipsiquiatria[19], bem como pelas idéias e movimentos de resistência à ditadura e anarquistas e por sua experiência no campo das artes, seja na área de direção teatral ou cinematográfica ou em oficinas e cursos sobre a psicologia do ator, Roberto Freire empreendeu uma vasta pesquisa e criou um processo vivencial com cerca de 40 jogos ao mesmo tempo lúdicos e políticos. Cada um destes jogos abre questões relacionadas ao uso soberano e criativo do corpo, procurando oferecer um caminho de busca e exercício de sua originalidade radical.

Os motivos pessoais de Roberto Freire, quando da criação da SOMA, eram claros: ele estava insatisfeito com os encaminhamentos tanto de sua função de terapeuta-psicanalista quanto de sua experiência como militante antiditadura. De um lado a outro, na psicanálise ou na prática militante, ele não percebia as condições para um efetivo processo de revolução do cotidiano, percebia que as terapias se eximiam da política e que a política negligenciava demandas de cunho terapêutico. Em quaisquer destes âmbitos, percebia o trânsito de poderes autoritários atravessando as práticas cotidianas, e também o adoecimento causado por negociações de poder muias vezes transmutadas em chantagens afetivas. O adoecimento do corpo parecia-lhe a principal causa deste sistema de relações; o autoritarismo e a servidão são seus principais produtos.

Tais idéias foram desenhadas numa cumplicidade com Wilhelm Reich, outro que poderia figurar naquela galeria de marginais. Como Roberto Freire, incompatibilizou-se tanto com a psicanálise quanto com os comunistas. Para Reich, é nas negociações de poder que conseguiremos encontrar uma etiologia para os processos de adoecimento, assunto propriamente terapêutico; no seu revés, é num funcionamento adoecido que residem os principais impedimentos para o bom exercício das liberdades no cotidiano, assunto propriamente político. Pensador e terapeuta radical, ele também emprestará a Roberto Freire a idéia de que o objeto de uma prática ao mesmo tempo terapêutica e política não será o psicológico, tampouco o institucional, mas os reflexos da existência de uma moral e de poderes autoritários na vigilância do corpo – ou do soma – em suas articulações com o mundo: o corpo envolvido numa política do cotidiano, num modo de vida.

No sentido de resgatar a possibilidade de um corpo potente, foi da experiência com atores e posteriormente de uma pesquisa sobre a capoeira angola como arte-luta corporal e de resistência que surgiu a SOMA; ela foi uma resposta única a estes dois problemas porque criou um espaço intermediário entre os domínios da terapia e da política, utilizando jogos aplicados em outros contextos para pensar o exercício de uma política do cotidiano: fazer da terapia uma condição para o bom uso da política; fazer da política uma condição para bom desenvolvimento de um processo terapêutico; entender a terapia e a política como modos criativos de libertação, modos que ajudam a produzir uma vida radical e bela cuja originalidade seja a dos grandes rompates de arte. A SOMA é um laboratório de liberdades, de criatividades, de resistências.

Articulada em três eixos de experimentação, a SOMA é um processo vivencial em grupos com duração média de um ano e meio. Ela busca problematizar esta política do cotidiano através de três eixos principais: poderíamos chamar o primeiro grande eixo de vivencial, pois é composto pela bateria de jogos, vivências diversas, resultado das pesquisas e dos contatos da SOMA com outras terapias e com os universos do teatro, do cinema, da dança e do ativismo, bateria que tem como objetivo problematizar a experiência cotidiana do corpo em suas diferentes facetas: sua vitalidade, seus esquemas de percepção, suas modalidades de comunicação, o balanço entre sua afetividade e sua agressividade, sua capacidade de enfrentamento e o uso de suas sensibilidades. Poderíamos chamar um segundo grande eixo de pedagógico, porque nenhuma terapia acontecerá sem cumplicidade com a cartografia, com a tentativa de entender que mundo é esse, como ele contribui para que nos tornemos quem somos e de que maneira podemos inventar práticas dissidentes a partir de uma política do cotidiano: macro e micropolítica, militâncias, insubmissões, história e estórias dos movimentos libertários e de seus anárquicos, autogestão e práticas de consenso. Um terceiro grande eixo articula-se em torno de pesquisas cuja data de fundação remete ao início dos anos 90, e diz respeito à complexa vivência da capoeiragem como recurso tanto terapêutico quanto político e artístico, trazendo ao processo uma amplitude de vivências e discussões que vão desde a vitalidade até a importância das práticas marginais, passando por elementos como canto, ritmo, dança, história, luta, teatralidade e expressividade. Cada um dos eixos, embora mantenha sua relativa independência e proponha cronogramas de encontros específicos durante o tempo de duração dos grupos, articula-se com os demais em uma mesma e única estratégia ao mesmo tempo terapêutica e política, e é somente nesta articulação que conseguiremos entender a complexidade dos resultados que a técnica da SOMA pode facilitar[20].

Além disso, porém, é preciso entender que a mais terapêutica e a mais política das relações é propriamente a amizade, e que é nestes momentos revolucionários vividos entre indivíduos livres, momento que consistem menos de técnicas que de capacidade de encontro entre as pessoas envolvidas, é daí que vem o substrato a produzir da vida uma obra radical e bela. A própria amizade não pode ser definida sem seu caráter revolucionário, sem ser aquele encontro de corpos que potencializa alternativas, amplifica afetos, liberta rebeldias, agencia estratégias de lado a lado. Elegemos a amizade à anarquista como modalidade terapêutica, e este pode ser o principal motivo de chamarmos a SOMA de uma terapia anarquista: um somaterapeuta como antipsicoterapeuta será antes de tudo um entusiasta, um instigador do movimento e da criação.

Ao imaginarmos um encontro dos dois, Michel Onfray e Roberto Freire, certamente teríamos que imaginar o inusitado de um encontro entre anárquicos. Suas biografias, por caminhos e desde lugares diferentes, apontam para um mesmo movimento de ligação entre prazer e anarquia, e incitam caminhos de experimentação. Se Michel Onfray sintetiza sua biografia numa caixa tanto de ferramentas filosóficas quanto de impressões cartográficas, Roberto Freire afirma que sua biografia é melhor sintetizada na SOMA, um laboratório, uma terapia anarquista.

Neste ponto, eles não só mantém um inusitado encontro como mantém uma estratégia suplementar: sem que deixem de ter sua biografia própria e sem que eprimam o surgimento das nuances entre suas concepções, Onfray e Freire completam-se sem que precisemos apagar nada de sua originalidade. Onfray multiplica as apologias que Freire incita e propõe experimentar, Freire multiplica as apologias que Onfray incita e propõe experimentar. No seu encontro, antes de uma tácita concordância, a cumplicidade de uma grande explosão de possibilidades, como deve ser numa boa amizade à anarquista.


[1] Michel Onfray. “Virtudes” in A Arte de Ter Prazer – Por um materialismo hedonista. São Paulo, Martins Fontes, 1999. tradução Monica Stahel. p.227-311.

[2] Guy Debord. Panegírico. São Paulo, Conrad, 2002. tradução Edson Cardoni.

[3] Roberto Freire. ‘Que cada um se antene enquanto é tempo’ in Viva eu Viva tu Viva o rabo do tatu! São Paulo, Símbolo, 1977. p.121-122.

[4] Michel Onfray. ‘Estética: pequena teoria da escultura de si’ in A Escultura de Si. Rio de Janeiro, Rocco, 1995. tradução Mauro Pinheiro. p.65-101.

[5] Max Stirner. O Únido e sua Propriedade. Lisboa (Portugal), Antígona, 2004.

[6] Charles Fourier. Le Nouveau Monde Industriel et Sociétaire. Paris (França), Flammarion, 1973.

[7] Antonin Artaud. “Para terminar com el juicio de Dios” in Paginas Escogidas. Buenos Aires, NEED, 1997. tradução Sara Irwin & Mirta Rosenberg. p.193-229.

[8] Thomas Hanna. Corpos em revolta (uma abertura para o pensamento somático), Rio de Janeiro, Edições Mundo Musical, 1972.

[9] Hakim Bey. CAOS – Terrorismo poético e outros crimes exemplares. São Paulo, Conrad, 2003. tradução Patricia Decia & Renato Resende. & TAZ – Zona Autônoma Temporária. São Paulo, Conrad, 2001. tradução Patricia Decia & Renato Resende.

[10] Michel Onfray. ‘Fisiologia do corpo político’ in A Política do Rebelde – Tratado de Resistência e Insubmissão. Rio de Janeiro, Rocco, 2001. tradução de Mauro Pinheiro. p.13-28.

[11] Michel Onfray. ‘Peregrinações em busca de uma figura’ in A Escultura de Si. (op.cit.) p.09-19.

[12] Michel Onfray. ‘Genealogia da minha moral’ in A Arte de Ter Prazer – Por um materialismo hedonista. (op.cit.) p.13-21.

[13] Michel Onfray. ‘Ensaio de autobiografia alimentar’ in O Ventre dos Filósofos –Crítica da razão dietética. Rio de Janeiro, Rocco, 1990. tradução Ana Maria Scherer. p.09-18.

[14] Michel Onfray. ‘Autobiografia alimentar, continuação e ainda’ in A Razão Gulosa – Filosofia do gosto. Rio de Janeiro, Rocco, 1999. tradução Ana Maria Scherer. p.11-18.

[15] Roberto Freire. Eu É um Outro. Salvador, Maianga, 2002.

[16] Roberto Freire. Sem Tesão Não Há Solução. São Paulo, Trigrama, 1990.

[17] Roberto Freire. Utopia e Paixão – A política do cotidiano. São Paulo, Trigrama, 1991.

[18] Roberto Freire. Ame e Dê Vexame. Rio de Janeiro, Guanabara, 1991.

[19] Sobre a teoria da SOMA, ver: Roberto Freire e Coletivo Anarquista Brancaleone. O Tesão pela Vida Vol.1. São Paulo, Francis, 2006.

[20] Sobre a metodologia da SOMA, ver: Roberto Freire e Coletivo Anarquista Brancaleone. O Tesão pela Vida Vol.2. São Paulo, Francis, 2007.