26.8.07

cartograma#80 - fluoxetina, por fAABIO pINTO

Escovei os dentes por duas horas seguidas
Ainda sou um menino bem comportado
Que segura as mangas da camiseta pra colocar o casaco
Todas as retas que traço terminam num abismo à esquerda
Meu sexo é tosco mas tenho caráter
Não gosto de aquecedores e nunca andei de avião
O número cinco me dá muita sorte
Quando falo de mim não consigo parar
até revelar um segredo gravíssimo

Ontem esqueci de fazer os temas
Quando falo do campo sempre digo "lá fora"
Meus livros me oprimem e fazem companhia
Dos discos que tenho nenhum quero ouvir
Não tenho dinheiro mas gasto sapato
Não faço a barba mas ando de ônibus
Acredito nos santos mas deus não existe.

cartograma#79 - gentilezas, por fAABIO pINTO

A vítima apresentava várias escoriações e perfurações de bala por todo corpo.
Roberto Carlos tem uma perna mecânica devido a um acidente de trem e ninguém sabe qual delas.
O sofá amarelo onde a vítima estava sentada ficou vermelho de sangue e parecia estar em chamas.
Karen Carpenter morreu de fome.
Abelardo Barbosa velho guerreiro chacrinha anunciava Clara Nunes macumbêra.
Mário Gomes, em turnê pelo Brasil, foi internado às pressas em um hospital, portando uma cenoura entalada no cu.
O pica-pau "pájaro loco" costuma quebrar os ossos, decepar, esmagar e perfurar seus desafetos com um bico afiadíssimo.
A vítima possuia a guarda de um filho que era a cara do pai dela.
Walt Disney foi congelado e Chevy Chase está quase completamente careca.
Dorival Caimy pôs um ventilador em frente à sua poltrona, e com toda razão.
As baleias falam, tem gírias e sujeitos morando em suas barrigas.
Os coalas comem folhas de eucalipto e estão ficando cegos.
A vítima andara pela rua dois dias antes, sem destino, com o pênis de seu agressor na mão.
A vítima mandou consertar o chuveiro por que esquentava demais e lhe queimava a pele com água pelando na noite do crime e essa foi a última coisa que lhe veio à cabeça.
Freddie Mercury nasceu na Tanzânia sob o nome de Frederick Bulsara e submeteu-se à uma lavagem estomacal para livrar-se de uma massa de esperma.
Zacarias era aidético, Oscarito ciumento e Renato Aragão não tem nenhum caráter.
A vítima também não tinha nenhum caráter.
Nove entre dez estrelas usam Lux luxo mas só Omo lava mais branco.
A vítima apresentava garganta, laringe, faringe, estômago e intestinos corroídos por Diabo Verde.
A romizeta era um veículo que possuía uma abertura frontal que lhe dava uma aparência bastante peculiar.
A vítima calçava pantufas verdes parecidas com vitórias-régias.
Tim Maia cheirava cocaína e tocava com a vitória-régia.
Virgulino Ferreira o Lampião teve a sua e as cabeças de seu bando cortadas.
Itamar Assumpção chama suas mulheres de orquídeas.
O dragão é um bicho muito louco que solta fogo pelo nariz, de acordo com a moça da propaganda da Calvin Klein.
De onde menos se espera é que não vem nada mesmo.
Quem fecha os olhos de dia não consegue fechá-los à noite.

cartograma#78 - O.Velha (destaque circunstancial)

Tenho pensado em morar sozinho,em viajar sozinho,dizer as coisas certas sozinho,ir sozinho ao mercado,e comprar um frango assado (para uma pessoa só, um frango assado deve durar várias refeições, se for um frango só é claro, sem polentas), jogar xadrez sozinho, conhecer pessoas sozinhas e convidá-las para uma consulta em grupo, em um dentista qualquer, quando estou só gosto da chuva, e me entusiasmo com ela, desejo falar sozinho, achar um chaveiro de pé-de-coelho sozinho, ser atropelado e posteriormente ser socorrido sozinho, na minha cidade as calçadas são estreitas, para as pessoas caminharem sozinhas, gosto de chegar atrasado sozinho, de ler jornal sozinho, esperar em uma longa fila bancária sozinho e pagar minha pequena conta de luz, mentir sozinho, descobrir algo sozinho e depois ir embora.


cartograma#77 - O.Velha

A MANCHA NA AGENDA DE PAULA
http://www.angelfire.com/vt/theremin/onzeII.html

PAULA SEMPRE FOI MOÇA DE FAMÍLIA
http://www.angelfire.com/vt/theremin/paula.html

O MARAVILHOSO MUNDO MINÚSCULO DE O.VELHA
http://www.angelfire.com/vt/theremin/mundo.html

cartograma#76 - fAABIO pINTO

MANIFESTO SOLÍCITO
Exaltação das vocações mínimas

Finalmente não há mais o que fazer. Dificilmente nos sentiremos confortáveis.
Dormimos em camas de pregos e acordamos cada vez mais cedo.
Produzimos de acordo com nossa exigente mediocridade.
Sempre respondemos "sim" e baixamos a cabeça aos subalternos.
Pedimos que nos pisem nos pés pois não devemos andar eretos.
Não só ficamos contentes como agradecemos efusivamente qualquer tipo de agressão.
Somos atraídos pelo passado e rechaçados pelo futuro. Gostamos de deixar alguma sujeira na cara como suíças ou cavanhaque.
Fazemos o sexo mais contrito de todos os tempos.
Somos felizes e ninguém consegue tirar o sorriso da nossa cara.
Nossa elegância símia está muito próxima da indigência.
Toda farsa é absolutamente bem vinda.
Seja cultivada toda perspectiva irreal ou mística do mundo.
Assumimos nossas limitações. Nossas armas estão à vista de todos.
Somos profissionais, especialistas, palestrantes, sumidades e gênios.
Defendemos a cultura-refresco e a alienação saudável.
Desprezamos qualquer um que se leve muito a sério.
Seremos portanto, os melhores tios do novo século.

cartograma #75 - um e noventa e nove, partes 1 & 2

http://www.angelfire.com/vt/theremin/seis.html
http://www.angelfire.com/vt/theremin/um99.html

imprescindível.
por Maurício O. Krebs.

cartograma#74 - por Milton Colonetti (1999)

Mujeres Ejaculam
...
Amor condusse noi ad una morte.
"Inferno", V, 106
```

uma boa festa termina em tiro. tiro de porra, que fique dito, no colo do útero untado, onde todos os tiros deveriam encontrar seu termo, idealmente. Mulheres também ejaculam. Eu não consigo pensar numa buceta, chamamos de vulva, afinal elas ejaculam, mas não consigo pensar numa vulva canal vagina e todo o conjunto sem imaginá-los molhados, fluídos escorrendo coxa abaixo, ou acima, dependendo da posição. esta, uma boa festa, terminou em tiro.

ela tinha lábios e nariz que me lembravam os D’ela, lábios que me diziam sim, mulheres ejaculam. gozava apertando minhas pernas nas suas, mordendo a fronha do travesseiro, com o rosto virado, e ejaculava, bem mais do que eu.

minha mais remota lembrança pornográfica é um fragmento encontrado no lixo, perto do colégio de primeiro grau, cuidado por freiras, não o lixo sim o colégio. um dos quadros duma página, onde um homem felava uma vulva, encharcada, com um balãozinho de diálogo: "vou colher todo o néctar".

era essa a imagem que eu tinha na cabeça, enquanto minha lépida língua esbofeteava seu clitóris. "vou colher todo o néctar" e comecei a sugar, sorvendo cada gota que descia canal abaixo, e como eram numerosas. mulheres também ejaculam, homens também engolem.

ela encontrou ele caminhando. Era como as pessoas se encontravam nessa época. ele havia se perdido, tempos atrás, seu destacamento. agora era um cavaleiro andante, parzival, depois de ser ferido em waterloo. conservava, untando com óleo, sua lança de legionário, quando marchou ombro a ombro com julio césar, oriente a dentro. chegou às índias ocidentais numa nau portuguesa, depois de resgatarem um tal de robinson na costa africana.

ela, bem, ela sempre vivera ali. fazia parte do ecossistema, uma força telúrica, emanada de algum geiser no interior da mata, do coração das trevas. movia-se como um lince, sem ser percebida, mas deixando todos afoitos com a muda possibilidade [e expectativa] do bote. seu covil era à margem do rio, suas mão tinham manchas de sangue, perenes. Ejaculação mensal, cio ciclotímico. me dê esse cálice, pai.

abdica da visão para obter A Visão. ah, sim, claro, ela tinha olheiras de quem poderia dormir mil anos
shyne shyne

shyne boots of leather

que lhe conferiam polimórficos poderes pentecostais. todas as mães são cegas, nem todas as fauces são rubras. convenhamos, não valia um tostão.

mas ele tinha bagos que poderiam verter semem mil vezes, repovoando, se necessário, todo o planeta. Um acordo tático, entre cavalheiros. afinal, eles ejaculavam.

a primeira coisa que ela observou, confessou depois mediante minucioso interrogatório, fora a calça dele, puída, rasgada, crivada de espinhos, calça de quem não sabe direito onde ir. ele observou seus tênis, um de cada cor, azul e vermelho, em cada pé. tênis de que não sabe onde pisa. mas estavam nus por baixo das peles, e disso ambos tinham consciência, santos imaculados que eram.

por nossa senhora aparecida neguinha dormindo no leito do rio, ele faria qualquer coisa para trocar ejaculações com ela. e nem foi preciso nada mais do que um "oi, vai pra lá?" e duas piscadelas demoníacas, uma voluntária, outra não.

veja bem, não estou dizendo que exista algo de imoral nisso. de forma alguma. Simplesmente foram dois cios que se cruzaram, culpa dos feromonios, do clima, de qualquer fator que independa de suas vontades.

mas a vontade existia, não latente, não não, uma vontade que estava na cara, nos olhos que roubavam a alma, que perscrutavam os movimentos, que imprimiam impressões aos passos, na cadência e no timbre.

o antigo confronto entre homem e besta. um homem ideal, pairando nos objetos que os cercavam, balcão, mesas, bebida engarrafada e máquina de gelo. a besta eram eles, que estivessem na mata não hesitariam em se agarrar no primeiro momento.

se acaba em tiro, este era um duelo, a doze passos, que se contavam regressivamente. sacaram ao mesmo tempo, e se atingiram mutuamente, morrendo simultaneamente. sem proteções, sem paramédicos, como os bons duelos devem ser travados. na verdade era um duelo de justa, uma amazona e um cavaleiro, os dois em carga um contra o outro, duas lanças em punho, triplo falo, duas ejaculações e um ponto de fuga, para a coroa. tomar de assalto o paraíso.

boas festas terminam em morte, duas vítimas entrelaçadas, envoltas num cobertor alvo-rubro, Vênus nascida da espuma sangrenta do caralho decepado de Urano.

basta de metáforas.

Um Homem.
Uma Mulher.
Uma Cama.

o resto são conjecturas que deixo para os filisteus.

12.8.07

cartograma#72 - onfray-freire

À margem do racionalismo puro ou aplicado, território da Razão suficiente, Michel Onfray constrói janelas que permitem uma imersão no materialismo. Diferente do tema do corpo tecno-científico, objeto tomado como dogmático e previsível, fala do corpo sensível que depõe contra a claustrofobia da Idéia como instância privilegiada; fala de um corpo mergulhado no mundo que, ao invés de percebê-lo de fora, amputado ou secundário, dele participa radicalmente, que afeta e é afetado, dando movimento orgânico às sociedades, às ideologias e às subjetividades sobre os limiares de sua diferenciação biológica original. Diferente de um pensamento que toma o corpo como objeto tecno-científico, o materialismo hedonista está ligado à experiência sempre reaberta do corpo no mundo, ligando no corpo uma sensibilidade compartilhada e uma ideação coletiva, ligando no ser os estratos orgânicos, afetivos e subjetivos; o materialismo hedonista encontra neste corpo limítrofe, em vias de diferenciação, o ponto singular onde articula-se a complexa consistência individual da vida e seus funcionamentos.

Um tal pensamento nos fará redimensionar antigos problemas, dentre eles os problemas que dizem respeito à política tradicional. Quando deixarmos de compreender a política como Governo das sociedades, traremos seu jogo de forças para o cotidiano, instância habitada pelo corpo em suas articulações. No cotidiano, numa intercessão com os problemas colocados por outros cúmplices, o autor vai procurar uma nova dimensão para os nossos problemas políticos tradicionais, chegando à estética da escultura de si como apologia das rebeldias. Contra a proliferação de microfascismos cotidianos, a aposta no indivíduo e sua soberania, a aposta no autogoverno, a aposta na criação cotidiana do modo de vida como obra original e prazerosa: radical estética da existência, gozo de existir.

Em seu A Arte de Ter Prazer, empreende uma arqueologia da filosofia mundana, revelando entre os suntuosos cômodos do grande museu das virtudes filosóficas oficiais o rumor de uma nova galeria marginal: a galeria dos devassos. Desde os cirenaicos, passando pelos gnósticos licenciosos e pelos Irmãos e Irmãs do Livre-Espírito, por Sade, Charles Fourier e La Mettrie, sua galeria marginal chega até contemporâneos como Raoul Vaneigem[1]. O crivo de seu projeto está preocupado com os interesses oblíquos às corporações régias e burguesas; senão com os interesses oblíquos, com as atitudes de real e cotidiano afrontamento de sua moral comportada. Os trajetos que nosso intercessor resgata nesta galeria hedonista revelam a história de homens e mulheres que não compreendiam a possibilidade da filosofia sem seus cruzamentos com a insubmissão e o prazer, homens e mulheres para quem os instantes fugidios da sabedoria aconteciam em co-extensão com os instantes culminantes de rebeldia, satisfação e gozo, muitas vezes com os instantes radicais de insubordinação, amoralidade ou crime.

Trazer esta galeria marginal ao museu das virtudes filosóficas oficiais acaba por revelar que uma história comportada da filosofia é somente outra de suas estórias mal contadas ou contadas à metade. Apresentada num longo texto em papel timbrado, uma história comportada da filosofia está permeada por todo um procedimento meticuloso que procurou marcar suas partes mundanas sob o signo da destemperança, revelando frente a este negativo monstruoso a possibilidade de uma única luminosidade ascética. Na história comportada da filosofia, o corpo passa a ser carne maculada por nossa condição demasiado humana; os usos do corpo estão submetidos aos registros da negação, da sujeição e do silenciamento das paixões através de diferentes formas de transcendentalismo e idealismo; além disso, toda e qualquer virtude dissidente deve ser abolida em favor de contratualidades consensuais. O projeto de uma arqueologia da filosofia mundana fará com que todos estes tipos sórdidos ressurjam como um rumor no buraco negro da memória oficial, fará aparecer toda sorte de tipos transtornados exercendo uma filosofia limítrofe, radical e explosiva, em nada hedonista se não trouxer momentos de rebeldia, transe e gozo.

Uma arqueologia da filosofia mundana confunde-se com as estórias de arrebatamento que consegue suscitar, ali onde toda crítica vem numa nova sensação, numa nova posição radical; ali onde toda nova intuição servirá de nova charada às esfinges, propondo cenários que aparecem-lhes como irresponsáveis, egoístas ou mentirosos, delirantes ou obscenos. Propondo-lhe um corpo rebelde que nega toda forma de sacrifício para fazer de si mesmo uma obra de arte.

Cada um a seu modo, ignorando os axiomas de rigor e os tratados da boa educação, os hedonistas entregam-se ao exercício de uma filosofia dedicada à composição de instantes sublimes, onde a vida afirme sua potência no inusitado dos acontecimentos prazerosos; ele sobretudo deseja os acontecimentos prazerosos. Se o desejo indica tão somente a ubiqüidade produtiva do tempo, a fluidez das passagens, o hedonista não se contentará somente com desejar; mesmo que entenda a vida em sua infinita mutação e seu exercício cotidiano como constante aceleração, ele não abrirá mão de seus cristais de gozo, de suas experiências culminantes de autonomia temporária, bem como de todo o langor aí proporcionado. De outro modo, se a crítica deverá ser investida com uma índole de sacrifício, o bloqueio destas experiências culminantes, então o hedonista fará tudo menos uma crítica; ele será o ator da poética, do escárnio e da gargalhada entre o encadear dos instantes sublimes. Esta perseverança ímpar no ser como busca dos instantes sublimes é seu ato de resistência ao interesse ascético, civilizatório. O hedonista não deverá somente contar ou descrever grandes cenários, senão tê-los vivido especificamente. Em seu cotidiano, deverá descrever as grandes estórias de suas errâncias, mas também experimentá-las contra todas as estórias de tédio e timidez; tomando o corpo e a vida como instrumentos da experimentação, o filósofo hedonista não deverá somente ler, refletir e escrever, mas também beber o quanto puder[2].

O exercício deste tipo de filosofia normalmente é feito desde a condição de estrangeiro; não raro o hedonista emitiu desde calabouços e prisões, em meio ao calor das fogueiras ou à correria das perseguições; não raro desde dentro dos catálogos psiquiátricos ou arrebatado pela loucura no interior das instituições de tutela. Seus excessos são criticados até por alguns cúmplices. Mas o hedonista será, antes e sempre, um solitário; mesmo entre cúmplices, sua solidão-sem-mágoa[3] mostrará que sobre cada um dos instantes de si mesmo estará comprimida toda a consistência do mundo, e que seu corpo é um conjunto de tensões e articulações sempre em vias de explosão; o hedonista é sobretudo um artista destas energias que atravessam o corpo, um estrategista das formas em estado nascente, um domador da vontade que procura transpor todos os limites que impedem que sua radical individualidade produza toda uma existência como obra de arte instantânea. Para o hedonista, só será possível a dignidade de rasgar os limites que protegem a vida dos inusitados encontros com a felicidade genuína quando tivermos o hábito de dar forma de arte à vida; engana-se quem pensa que este hábito não é um exercício prazeroso, o corpo como escultura hedonista de si, monumento ao instante[4].

Na extensão do projeto de Michel Onfray, contribuindo na composição desta galeria marginal cujos trajetos ele incita a resgatar, podemos encontrar uma filosofia mundana nos únicos de Max Stirner[5], nos harmonianos de Charles Fourier[6], nos corpos-sem-órgãos de Antonin Artaud[7], nos protomutantes de Thomas Hanna[8] e nos piratas e poetas terroristas de Hakim Bey[9]; tantos outros ajudam a formar um extensivo bando de hedonistas cuja experiência marginal, ligada ao temperamento rompante, investe cotidianamente a vida de uma força estética que articula sabedoria filosófica, criatividade, potência política e gozo; articula saber, poder e prazer. O próprio Onfray testemunha seu temperamento radical e hedonista quando escolhe começar seu livros contando estórias pessoais: revelando o momento em que descobriu sua fibra anarquista no ferver do sangue dentro de uma fábrica francesa[10], revelando-se um viajante solitário atrás de grandes e fortes cumplicidades filosóficas[11] ou um corpo dilacerado sentindo a volta da vida em sua carne[12], revelando-se um amante das nuances e excessos da gastronomia[13] e um dedicado sommelier[14]. Além disso, os temas e o próprio estilo de sua escrita testemunham seu jeito ao mesmo tempo rompante e sensível, assim como sua opção pela marginalidade institucional.

Pelo menos um brasileiro também faz jus a esta galeria marginal: Roberto Freire. Desde que redigiu sua autobiografia[15], não mais precisamos procurar em seus inúmeros livros o relato de suas experiências de vida: médico e psicanalista marginal, terapeuta radical, jornalista crítico, romancista, poeta, cineasta e dramaturgo de um cotidiano político, mas acima de tudo um incansável militante que foi sempre redescobindo os sentidos da anarquia em sua vida, e um inveterado boêmio e amante. Roberto Freire que descobriu que sem tesão não há solução no muro de um cemitério[16], que afirmou que a utopia deve ser cheia de paixão[17], que declarou que o vexame de amar é um ato revolucionário[18]; cúmplice que em tudo isso viveu e afirmou a necessidade do prazer e da criatividade como parte da revolução cotidiana.

* * *

Criada por Roberto Freire na década de 70, a SOMA é uma prática anarquista cuja ética supõe tanto as rebeldias quanto o hedonismo como partes da revolução no cotidiano. Seu surgimento deriva de uma pesquisa sobre o desbloqueio da criatividade, realizada no Centro de Estudos Macunaíma, em São Paulo, Brasil. Influenciado principalmente pelas idéias de Wilhelm Reich, de Frederik Perls, de David Cooper, Ronald Laing e demais participantes do movimento da antipsiquiatria[19], bem como pelas idéias e movimentos de resistência à ditadura e anarquistas e por sua experiência no campo das artes, seja na área de direção teatral ou cinematográfica ou em oficinas e cursos sobre a psicologia do ator, Roberto Freire empreendeu uma vasta pesquisa e criou um processo vivencial com cerca de 40 jogos ao mesmo tempo lúdicos e políticos. Cada um destes jogos abre questões relacionadas ao uso soberano e criativo do corpo, procurando oferecer um caminho de busca e exercício de sua originalidade radical.

Os motivos pessoais de Roberto Freire, quando da criação da SOMA, eram claros: ele estava insatisfeito com os encaminhamentos tanto de sua função de terapeuta-psicanalista quanto de sua experiência como militante antiditadura. De um lado a outro, na psicanálise ou na prática militante, ele não percebia as condições para um efetivo processo de revolução do cotidiano, percebia que as terapias se eximiam da política e que a política negligenciava demandas de cunho terapêutico. Em quaisquer destes âmbitos, percebia o trânsito de poderes autoritários atravessando as práticas cotidianas, e também o adoecimento causado por negociações de poder muias vezes transmutadas em chantagens afetivas. O adoecimento do corpo parecia-lhe a principal causa deste sistema de relações; o autoritarismo e a servidão são seus principais produtos.

Tais idéias foram desenhadas numa cumplicidade com Wilhelm Reich, outro que poderia figurar naquela galeria de marginais. Como Roberto Freire, incompatibilizou-se tanto com a psicanálise quanto com os comunistas. Para Reich, é nas negociações de poder que conseguiremos encontrar uma etiologia para os processos de adoecimento, assunto propriamente terapêutico; no seu revés, é num funcionamento adoecido que residem os principais impedimentos para o bom exercício das liberdades no cotidiano, assunto propriamente político. Pensador e terapeuta radical, ele também emprestará a Roberto Freire a idéia de que o objeto de uma prática ao mesmo tempo terapêutica e política não será o psicológico, tampouco o institucional, mas os reflexos da existência de uma moral e de poderes autoritários na vigilância do corpo – ou do soma – em suas articulações com o mundo: o corpo envolvido numa política do cotidiano, num modo de vida.

No sentido de resgatar a possibilidade de um corpo potente, foi da experiência com atores e posteriormente de uma pesquisa sobre a capoeira angola como arte-luta corporal e de resistência que surgiu a SOMA; ela foi uma resposta única a estes dois problemas porque criou um espaço intermediário entre os domínios da terapia e da política, utilizando jogos aplicados em outros contextos para pensar o exercício de uma política do cotidiano: fazer da terapia uma condição para o bom uso da política; fazer da política uma condição para bom desenvolvimento de um processo terapêutico; entender a terapia e a política como modos criativos de libertação, modos que ajudam a produzir uma vida radical e bela cuja originalidade seja a dos grandes rompates de arte. A SOMA é um laboratório de liberdades, de criatividades, de resistências.

Articulada em três eixos de experimentação, a SOMA é um processo vivencial em grupos com duração média de um ano e meio. Ela busca problematizar esta política do cotidiano através de três eixos principais: poderíamos chamar o primeiro grande eixo de vivencial, pois é composto pela bateria de jogos, vivências diversas, resultado das pesquisas e dos contatos da SOMA com outras terapias e com os universos do teatro, do cinema, da dança e do ativismo, bateria que tem como objetivo problematizar a experiência cotidiana do corpo em suas diferentes facetas: sua vitalidade, seus esquemas de percepção, suas modalidades de comunicação, o balanço entre sua afetividade e sua agressividade, sua capacidade de enfrentamento e o uso de suas sensibilidades. Poderíamos chamar um segundo grande eixo de pedagógico, porque nenhuma terapia acontecerá sem cumplicidade com a cartografia, com a tentativa de entender que mundo é esse, como ele contribui para que nos tornemos quem somos e de que maneira podemos inventar práticas dissidentes a partir de uma política do cotidiano: macro e micropolítica, militâncias, insubmissões, história e estórias dos movimentos libertários e de seus anárquicos, autogestão e práticas de consenso. Um terceiro grande eixo articula-se em torno de pesquisas cuja data de fundação remete ao início dos anos 90, e diz respeito à complexa vivência da capoeiragem como recurso tanto terapêutico quanto político e artístico, trazendo ao processo uma amplitude de vivências e discussões que vão desde a vitalidade até a importância das práticas marginais, passando por elementos como canto, ritmo, dança, história, luta, teatralidade e expressividade. Cada um dos eixos, embora mantenha sua relativa independência e proponha cronogramas de encontros específicos durante o tempo de duração dos grupos, articula-se com os demais em uma mesma e única estratégia ao mesmo tempo terapêutica e política, e é somente nesta articulação que conseguiremos entender a complexidade dos resultados que a técnica da SOMA pode facilitar[20].

Além disso, porém, é preciso entender que a mais terapêutica e a mais política das relações é propriamente a amizade, e que é nestes momentos revolucionários vividos entre indivíduos livres, momento que consistem menos de técnicas que de capacidade de encontro entre as pessoas envolvidas, é daí que vem o substrato a produzir da vida uma obra radical e bela. A própria amizade não pode ser definida sem seu caráter revolucionário, sem ser aquele encontro de corpos que potencializa alternativas, amplifica afetos, liberta rebeldias, agencia estratégias de lado a lado. Elegemos a amizade à anarquista como modalidade terapêutica, e este pode ser o principal motivo de chamarmos a SOMA de uma terapia anarquista: um somaterapeuta como antipsicoterapeuta será antes de tudo um entusiasta, um instigador do movimento e da criação.

Ao imaginarmos um encontro dos dois, Michel Onfray e Roberto Freire, certamente teríamos que imaginar o inusitado de um encontro entre anárquicos. Suas biografias, por caminhos e desde lugares diferentes, apontam para um mesmo movimento de ligação entre prazer e anarquia, e incitam caminhos de experimentação. Se Michel Onfray sintetiza sua biografia numa caixa tanto de ferramentas filosóficas quanto de impressões cartográficas, Roberto Freire afirma que sua biografia é melhor sintetizada na SOMA, um laboratório, uma terapia anarquista.

Neste ponto, eles não só mantém um inusitado encontro como mantém uma estratégia suplementar: sem que deixem de ter sua biografia própria e sem que eprimam o surgimento das nuances entre suas concepções, Onfray e Freire completam-se sem que precisemos apagar nada de sua originalidade. Onfray multiplica as apologias que Freire incita e propõe experimentar, Freire multiplica as apologias que Onfray incita e propõe experimentar. No seu encontro, antes de uma tácita concordância, a cumplicidade de uma grande explosão de possibilidades, como deve ser numa boa amizade à anarquista.


[1] Michel Onfray. “Virtudes” in A Arte de Ter Prazer – Por um materialismo hedonista. São Paulo, Martins Fontes, 1999. tradução Monica Stahel. p.227-311.

[2] Guy Debord. Panegírico. São Paulo, Conrad, 2002. tradução Edson Cardoni.

[3] Roberto Freire. ‘Que cada um se antene enquanto é tempo’ in Viva eu Viva tu Viva o rabo do tatu! São Paulo, Símbolo, 1977. p.121-122.

[4] Michel Onfray. ‘Estética: pequena teoria da escultura de si’ in A Escultura de Si. Rio de Janeiro, Rocco, 1995. tradução Mauro Pinheiro. p.65-101.

[5] Max Stirner. O Únido e sua Propriedade. Lisboa (Portugal), Antígona, 2004.

[6] Charles Fourier. Le Nouveau Monde Industriel et Sociétaire. Paris (França), Flammarion, 1973.

[7] Antonin Artaud. “Para terminar com el juicio de Dios” in Paginas Escogidas. Buenos Aires, NEED, 1997. tradução Sara Irwin & Mirta Rosenberg. p.193-229.

[8] Thomas Hanna. Corpos em revolta (uma abertura para o pensamento somático), Rio de Janeiro, Edições Mundo Musical, 1972.

[9] Hakim Bey. CAOS – Terrorismo poético e outros crimes exemplares. São Paulo, Conrad, 2003. tradução Patricia Decia & Renato Resende. & TAZ – Zona Autônoma Temporária. São Paulo, Conrad, 2001. tradução Patricia Decia & Renato Resende.

[10] Michel Onfray. ‘Fisiologia do corpo político’ in A Política do Rebelde – Tratado de Resistência e Insubmissão. Rio de Janeiro, Rocco, 2001. tradução de Mauro Pinheiro. p.13-28.

[11] Michel Onfray. ‘Peregrinações em busca de uma figura’ in A Escultura de Si. (op.cit.) p.09-19.

[12] Michel Onfray. ‘Genealogia da minha moral’ in A Arte de Ter Prazer – Por um materialismo hedonista. (op.cit.) p.13-21.

[13] Michel Onfray. ‘Ensaio de autobiografia alimentar’ in O Ventre dos Filósofos –Crítica da razão dietética. Rio de Janeiro, Rocco, 1990. tradução Ana Maria Scherer. p.09-18.

[14] Michel Onfray. ‘Autobiografia alimentar, continuação e ainda’ in A Razão Gulosa – Filosofia do gosto. Rio de Janeiro, Rocco, 1999. tradução Ana Maria Scherer. p.11-18.

[15] Roberto Freire. Eu É um Outro. Salvador, Maianga, 2002.

[16] Roberto Freire. Sem Tesão Não Há Solução. São Paulo, Trigrama, 1990.

[17] Roberto Freire. Utopia e Paixão – A política do cotidiano. São Paulo, Trigrama, 1991.

[18] Roberto Freire. Ame e Dê Vexame. Rio de Janeiro, Guanabara, 1991.

[19] Sobre a teoria da SOMA, ver: Roberto Freire e Coletivo Anarquista Brancaleone. O Tesão pela Vida Vol.1. São Paulo, Francis, 2006.

[20] Sobre a metodologia da SOMA, ver: Roberto Freire e Coletivo Anarquista Brancaleone. O Tesão pela Vida Vol.2. São Paulo, Francis, 2007.

cartograma#71 - cristo nunca usou calçado fechado

-Cristo nunca usou calçado fechado...
                               -O quê?
-Lembrei agora com esta estória da festa, de entrar descalço.
                               -Hmm... Lembrou o quê?
-Lembrei que um amigo gritou isso num casamento judeu, numa sinagoga, na hora da quebra das taças,
casamento tradicional, levantou, levantou os dois braços na direção do teto, olhou pro altar e gritou.
                               -Mas gritou o quê?
-“Cristo nunca usou calçado fechado!!” Não, não...
Ele disse: “Pois saibam que Cristo nunca usou calçado fechado. E que era negro, NEGRO!!”
                               -Mas por quê ele fez isso?
-Ora, catarse. Não sei.
                               -E os noivos?
-Os noivos?
                               -Não ficaram putos com ele?
-Não sei.
                               -Ele não ficou sabendo?
-Ele não conhecia os noivos.
                               -E estava lá pra quê?
-Não, estava passando e entrou. Pra fugir da chuva.
                               -Onde isso?
-Na orla.
                               -Deveria ter ido à praia.
-Mas era muita chuva...
                               -E daí?
-O pessoal tem medo dos raios...
                               -Mas assim compensa. Morrer assim compensa.
Morrer de raio na beira da praia, num dia de chuva, com todo aquele cheiro de mar.
Há mortes que compensam.
-Morrer de tédio compensa?
                               -Nunca.
-E morrer por dinheiro?
                               -Às vezes.
-E morrer de amor, compensa?
                               -Cristo nunca usou calçado fechado. E era negro.
-Mas Cristo não morreu de amor.
                               -Cristo morreu de quê?
-Cristo morreu crucificado.
                               -E o quê colocou ele na cruz?
-Ora, Roma.
                               -Não. Foi o amor.
 
                               -Não porque amou demais ou de menos, mas porque não amou.
-Como assim?
                               -Cristo salva, mas não ama.
-Cristo salva, mas não ama.
                               -É isso é que estou querendo dizer. Cristo salva, mas não ama.
-E daí?
                               -Foi por isso que ele foi pra cruz.
 
                               -Ainda mais se Roma foi a ocasião.
-Mas é o caso dos outros bandidos também?
                               -Que bandidos?
-Aqueles crucificados na colina junto com Cristo...
                               -Não, eles foram condenados pela lei dos bandidos.
-E Cristo?
                               -Cristo foi condenado pela lei do povo, não pela lei dos bandidos.
-E Madalena?
                               -Hmmm... Não devia ser boa como é no filme.
 
                               -Cristo era negro. Acho que casava bem. Devia ser bruto.
 
                               -Era uma época de brutos.
-Eu li que se vivia à toa, e que tudo era jogado pra fora da janela.
                               -Era uma época de brutos.
-Mas e se Cristo não ama, como é que fica?
                               -Pois é.
-Ora, mas e morrer de amor compensa ou não?
                               -Hoje, tu morrerias de amor por mim?
-O quê?
                               -Hoje, tu morrerias de amor por mim?
-Mone...
                               -É uma pergunta simples. Compensaria ou não?

cartograma#70 - dedo de prosa


cartograma#69

as católicas são terríveis.

6.8.07

cartograma#66 - amor

é o amor, e não a vida, o contrário da morte. R. Freire.

carograma#64 - Soma

Acredito que ninguém chega à Soma por acaso, mesmo sabendo que os caminhos que levam a este encontro não estão sempre bem desenhados; quero dizer que mesmo que não haja algo a pré-determinar este encontro ninguém chega e permanece numa prática como a Soma sem antes a ter desejado de alguma maneira. O acaso pode atuar, sim, mas em circunstâncias secundárias: uma discussão oportuna no momento oportuno, um bate-papo com conhecidos numa mesa de bar, um livro cujo título nos prendeu a atenção nas prateleiras de uma livraria, um cartaz que vemos ou uma filipeta que recebemos durante uma caminhada despretensiosa e rotineira; o acaso como aquela sensação de que estávamos no local certo, na certa certa. Mas não é disso que estou falando: mesmo que a Soma toque em você pela via de uma discussão, de um bate-papo, de um livro ou de uma filipeta, por indicação de algum amigo ou de algum conhecido, ainda será necessário deixar-se tocar por ela, e até tê-la procurado. Nisso reside o ato de desejá-la: só encontramos a Soma quando, de alguma forma, já queríamos atender aos seus manifestos. Roberto Freire instigou e continuamos a instigar: “Sem tesão não há solução! Não há utopia sem paixão! A rebeldia não vale nada sem tradução em felicidade genuína! O prazer é par da insubmissão! Ame e dê vexame! Nunca deseje a sua própria repressão!” Neste ponto, quando tratamos deste tipo de manifestos, não há acasos: ou já houve um desejo de atendê-los ou então tudo passará ao largo ainda outra vez. É preciso já haver um pouco do protomutante[1] em você, é preciso já haver pelo menos um pouco do anárquico em você. Os que ainda desejam a sua própria repressão, aqueles que vêem nos modos de vida burgueses o seu princípio de conforto e redenção, eles dificilmente virão ou ficarão entre nós: esses atendem a outros manifestos.

As histórias e motivos, porém, serão tão diversas quanto aqueles que as contam, isso porque muitos caminhos levam aos desejos de liberdade e cada caminho, desde que tenha este norte, ele já é um caminho de originalidade. Daqui em diante, cabe falar da formação em Soma e tentar explicá-la. Optei por falar da minha trajetória pessoal no contato com a Soma através de algumas cenas do passado; são cenas que dizem respeito ao surgimento deste anárquico em mim, ao porção que trouxe-me aqui, somaterapeuta em formação. Para utilizar uma expressão do escritor Julio Cortázar, é como duas pessoas que caminhavam pela cidade sem se procurar, mas sabendo que cedo ou tarde iriam encontrar-se. A formação em Soma: algo como uma longa preparação numa amizade à anarquista relativamente anterior e certamente exterior a qualquer roteiro ou procedimento formal.

Porto Alegre, 1998.

Meu primeiro contato com a Soma foi no ano de 1998, durante um encontro de estudantes de psicologia. Em janeiro de 1998, participava do conselho regional de estudantes de psicologia da região sul do Brasil, experiência autogestionária de estudantes de psicologia do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e organizamos um grande encontro de estudantes no campus da PUC de Porto Alegre. O encontro tinha um cronograma fixo de atividades, discussões relativas aos rumos da formação universitária em psicologia e da profissão de psicólogo no Brasil, mote principal do movimento estudantil, mas era aberto à inscrição de diferentes oficinas. Por sugestão e convite de um colega do conselho, estudante de uma das faculdades da região metropolitana de Porto Alegre, aconteceu uma oficina de Soma com Jorge Goia. Lembro de Goia chegando na secretaria do encontro e pedindo informações sobre a sala da oficina que ele iria ministrar, a oficina de Soma. Lembro também da roda de capoeira que foi realizada num dos pátios do antigo prédio 17, suas floreiras e colunas, e de como gostei da beleza e da picardia daquela brincadeira. Não lembro de ter prestado atenção à capoeira angola antes disso, mesmo que já tivesse flertado com a capoeira regional. Aquela roda fazia parte da programação da oficina de Soma. No início da faculdade – entrara em 1995 –, ainda envolto num tipo de psicologia que preocupava-se com o que chamávamos de “personalidade” – conceito que amputa ou secundariza o corpo das concepções sobre o comportamento –, envolvido com questões políticas mas ainda dentro de um sistema de reivindicações estudantis e institucionais mais ou menos abrangentes, e com muito trabalho a realizar para que o encontro desse certo, digo que nem cogitei de fazer a tal oficina sobre uma certa terapia Soma, vá lá anarquista. Posso dizer que aqui a Soma me tocou pela primeira vez, mas que ainda não foi aqui que me encontrei com ela. Durante o resto da faculdade, até meados de 2000, a Soma passou ao largo: fortemente envolvido com a minha formação, deixava pouco espaço ao que lhe era exterior. Até tornar-me “psicólogo”, pouco sabia da Soma: tanto as teorias que fornecem o alicerce conceitual da Soma, pesquisa primordial de Roberto Freire, quanto as novas teorias que o Brancaleone vem pesquisando[2], elas são completamente alijadas da formação universitária atual, e não só na área das psicologias. Isso não só evidencia uma dificuldade das estruturas institucionais das universidades ao dialogar com teorias e práticas radicais, mas evidencia também que a Soma constitui para si um domínio que não é de nenhuma das áreas do saber universitário, que a Soma lhe é propriamente uma anomalia, um domínio anti-acadêmico. Enquanto estivermos preocupados e envolvidos, assim como eu estava, com uma “psicologia” ou com qualquer outro destes domínios, nunca chegaremos à somatologia de Roberto Freire: a alma é o corpo, o corpo é a casa.

Rio de Janeiro, 2001.

Minha faculdade, na época, era reconhecidamente um dos redutos da psicanálise freudiana no Brasil, e essa era de longe a teoria mais estudada e discutida, defendida então como a base na formação de qualquer psicólogo. Os lindos domínios do inconsciente não sobreviveram à carga maçante de psicanálise ortodoxa que recebi em tais condições, isso porque descobri outros campos de conceitos mais interessantes e também porque as práticas psicológicas ditas clínicas ou terapêuticas não me agradavam tanto no que eu considerava sua neutralidade apolítica. Já formado, três anos de vida depois daquele encontro de estudantes, eu era um psicólogo interessado nas questões e nas aplicações comunitárias e institucionais da minha psicologia. Gostava do trabalho em comunidades e instituições porque permitia intervenções interessadas e até militantes contra toda a neutralidade da psicologia clínica em geral. Engajado em entidades diversas, tendo passado do movimento estudantil ao meu sindicato e ainda circulando pelos corredores da universidade, eu mantinha uma boa relação com o ambiente universitário da psicologia e fui convidado para vir ao Rio de Janeiro para um outro encontro de estudantes, desta vez do amplo movimento nacional: uma bienal da cultura e arte da UNE. Uma das universidades da região metropolitana de Porto Alegre conseguiu transporte para todos e, como todos os interessados numa bienal da UNE já não eram muitos, restaram alguns lugares de bandeja. Abertamente desinteressado pela política institucional e partidária dos organizadores do evento, coisa que eu já abominava desde os tempos de faculdade, entrei nesta boquinha. O encontro forneceria alojamento gratuito, alimentação barata, tudo prometia boas festas, o convite veio de uma amiga querida e uma semana de Rio de Janeiro ainda não me parece nada mal. Na primavera de 2001, embarquei para minha segunda aventura na cidade maravilhosa. A amiga que fez o convite havia concluído há pouco tempo um grupo de Soma em Porto Alegre, com Jorge Goia – aquele mesmo de 1998 –. Junto com ela, outras pessoas deste mesmo grupo entraram na tal viagem e, entre os papos que rechearam o trajeto de dia inteiro, o turismo, as histórias, a psicologia, a política e a Soma. Todos concordaram que eu deveria conhecer o processo, intimando-me a participar de uma oficina que aconteceria no evento, essa com o somaterapeuta João da Mata. E foi o que aconteceu: fomos quase todos à tal oficina. Numa sala de aula do grande prédio da UERJ, fizemos a vivência conhecida como “tronco”[3]. A vivência causa uma mobilização corporal intensa numa sensação bastante inédita, pelo menos para mim e até então. Depois da vivência, conversamos sobre a Soma, sobre seu funcionamento, sobre alguns de seus princípios e sobre sua atualidade. Deixei meu e-mail numa folha para contatos posteriores, voltei a Porto Alegre realmente intrigado com aquela outra possibilidade de fazer uma espécie de clínica e tratei de tudo isso sentado inquieto na minha terapia tradicional.

Erechim, 2002.

Logo depois de voltar do Rio de Janeiro, em meados de 2001, fui trabalhar com educação popular no interior do Rio Grande do Sul, cidade de Erechim. A maior parte dos movimentos sociais rurais é muito forte na região, e alguns urbanos também; o trabalho consistiria em assessorar estes movimentos no que fosse necessário. Aceitei prontamente o convite, que veio de um antigo amigo que me flagrou sobrevivendo às custas da venda de revistas durante o segundo Fórum Social Mundial, e enfim transportei toda minha vida para lá, levando também o afã de enfim fazer da política uma profissão de vida. Trabalhávamos exclusivamente para estas entidades esquerdistas, de municípios a cooperativas, passando por movimentos sociais e sindicatos, planejando e executando desde programas de educação até a invasão de bancos e prédios públicos, o trancamento de ruas, a colocação estratégica de carros de som em praça pública etc. Marchávamos ativamente no rumo do que era a nossa espécie de revolução. Foram bons tempos de cumplicidade revolucionária, a despeito das discordâncias que viriam com o aprofundamento cotidiano das relações. Creio que neste momento eu tenha entendido a função do amor como dinamizador da política, isso porque amava aquele sentido revolucionário de uma forma que me dava energias suficientes para correr de sol a sol. Nesta época, também realizava minha pesquisa de mestrado sobre novos movimentos sociais e minhas leituras levavam-me cada vez mais à formulação de uma política dos corpos – principalmente através de Foucault, Deleuze e Guattari[4] – e também às discussões sobre a história e a atualidade do movimento anarquista. A entrada em cena do corpo e do anarquismo fez com que os escritos de Roberto Freire aparecessem inevitavelmente e em ótima hora: ajudaram-me não somente a construir uma outra concepção de política, isso porque em seus escritos podemos perceber a formulação de um anarquismo somático bastante original, mas ajudaram-me também a revelar ou a reinterpretar diversos pontos importantes do meu viver cotidiano. Dois anos depois, ainda em Erechim, já havia algo diferente no ar: apesar daquela cumplicidade revolucionária, quando as relações evidenciavam que não basta estar além da margem esquerda e que é preciso uma política do cotidiano, tudo ficava muito falho. A decorrência disso era o apodrecimento das relações, a proliferação de uma mágoa surda entre pessoas. A cada nova jogatina de poder, o exercício da política era transformado numa política de guerra onde os próprios cúmplices, de amigos, viram potenciais inimigos; onde os adversários não são nada mais do que gente que é preciso bater batalha após batalha. As armas da retórica... o conchavo que sempre precede o grande teatro das assembléias públicas. Um ambiente péssimo. Deitado na minha cama numa noite fria, um dia calhou-me de retomar Utopia e Paixão, que havia lido com descuido meses antes. Ao final das 119 páginas do livro, sabia que precisava sair daquele ambiente e que aquela política não correspondia à minha paixão. Se a oficina de 2001 fora uma aula sobre terapias e um chacoalhão na minha porção psicólogo, Utopia e Paixão[5] foi um cachoalhão na minha porção militante. Larguei tudo e voltei a tentar minha vida em Porto Alegre, agora decidido a procurar mais informações sobre Roberto Freire e a Soma.

Ibiraquera, 2004.

Cheguei de volta em Porto Alegre no início de 2003. Procurando informações sobre a Soma, descobri que haveria um grupo novo em Porto Alegre, em breve. O grupo era justamente com aquele mesmo Jorge Goia. Mandei uma mensagem para ele e nos encontramos para um bate-papo na lancheria do bairro Bom Fim. Contrariando qualquer expectativa de uma entrevista formal, conversamos de forma amigável, e ele falava com especial entusiasmo, parecia querer explicar-me tudo sobre a Soma, o que era e como acontecia, como seria, sua história e todo o resto. Eu ouvia e só tinha vontade de dizer pra ele que já conhecia um pouco daquilo tudo, que tinha quase a certeza de que estava a fim de participar de um grupo e achava que aquela era a hora. Queria dizer para ele que eu não estava ali por acaso. A oficina aconteceu logo depois de nosso bate-papo e só confirmou meu interesse. Daí em diante, formamos um grupo e começamos a Soma. Ano e pouco depois, eu estava sentado na sala de uma casa simples na praia de Ibiraquera, no lindo litoral de Santa Catarina; a casa pertencia à nossa amiga Lu, colega de grupo, e ela própria estava sentada à minha frente junto com Goia e as demais pessoas que haviam permanecido até o final do grupo: Belleza, Dette, Dieguito, Marcelão, Marco Pólo e Quel. Estávamos fazendo a minha “cadeira quente”[6], processo também descrito na primeira parte deste livro. Todo aquele último ano e pouco passou novamente por meu corpo no tempo que estivemos juntos ali, a experiência de uma amizade à anarquista com aquelas pessoas, tudo o que Goia havia nos dito sobre um cotidiano libertário, tudo o que aprendi ouvindo e falando, o que pensei e repensei, as novas certezas, as antigas dúvidas, o que eu fiz e procastinei, medos e anseios, tesões, projetos. Era um ano e pouco de muita diferença, como se algo houvesse acelerado a minha experiência. O que se passara? Depois do grupo desfeito, eu já trabalhava como psicoterapeuta numa clínica pública repleta de psicanalistas lacanianos, também como pesquisador convidado no pós-graduação da UFRGS e como professor em disciplinas que considerava interessantes numa faculdade particular do interior, cidade de Santo Ângelo. Falou-se várias vezes em formação durante o grupo de Soma e aquilo sempre prendeu a minha atenção. Guardei um silêncio na época necessário e, seis meses depois do final do grupo, escrevi ao Goia perguntando sobre formação e falando de meu desejo de fazê-la, se possível. Neste momento, além das questões de ordem terapêutica e política que tanto Roberto Freire quanto o Brancaleone tinham proposto, pontos de virada em diferentes momentos da minha vida, os resultados da Soma no meu cotidiano qualificavam este desejo de formação: queria continuar a sentir estes efeitos, e também ter a capacidade de estender a prática deste laboratório. A resposta de Goia foi um convite. Conversei com João, Vera e Marcelo algumas vezes, conheci Roberto e, depois de uma boa correria entre os avisos prévios e a venda do que eu tinha, mudei para o Rio de Janeiro. Era 18 de janeiro de 2005: começava formalmente a minha formação em Soma.

Rio de Janeiro, 2007.

Se estas cenas pessoais procuram fornecer uma metáfora possível para a chegada da Soma na vida de alguém, elas não são totalmente fiéis ao que poderíamos considerar como condições gerais de uma formação em Soma: em primeiro lugar, não é preciso ter formação em psicologia ou em qualquer outra área previamente ligada às terapias, tampouco é necessária uma formação propriamente universitária prévia. Calhou-me como psicólogo, sim; tão brutalmente quanto não por acaso. A formação em Soma não é uma faculdade, tampouco um curso de especialização ou pós-graduação; ela é uma formação independente e autônoma em relação a qualquer outra estrutura ou programa institucional que busque marcar hierarquias ou conferir graus ou titulações de saber às pessoas. Em segundo lugar, mesmo que eu tenha optado por vir morar no Rio de Janeiro, cidade que atualmente concentra o maior número de membros do Brancaleone e, por isso, serve como ponto de referência para a Soma, esta também não é uma condição geral da formação: podemos dizer que ela é uma formação desinstitucionalizada e descentralizada.

Certamente a formação tem um eixo que poderíamos chamar de “técnico”, onde o somaterapeuta em formação precisará pesquisar, aprender e recriar as habilidades necessárias para facilitar um grupo de Soma: deverá conhecer as pesquisas teóricas de Roberto Freire; além disso, deverá estar atento aos diálogos destas pesquisas teóricas primordiais com autores e condições contemporâneas; deverá também situar a Soma dentro de uma discussão mais geral sobre as terapias, e assim compreender como neste ponto ela desempenha um papel histórico e político singular, e optar por exercê-lo; deverá também saber situá-la na discussão mais geral sobre políticas, e então compreender como ela dialoga com os modos de vida militantes propondo uma política do cotidiano; deve conhecer tanto o conjunto das vivências que a Soma utiliza quanto alguns cuidados para sua aplicação num grupo; deve conhecer os princípios da autogestão e procurar desenvolver a sensibilidade no rumo do autogoverno de cada qual por si; deverá ser jogador de capoeira angola e criar uma maneira de ensiná-la etc. A observação atenta aos acontecimentos sociais e políticos da atualidade, através de uma análise crítica da leitura de jornais e noticiários, tem uma importância significativa para a formação. Afirmo isso porque, para ser um bom somaterapeuta, mais do que dominar sua técnica, é preciso estar atento aos acontecimentos e transformações pelas quais a sociedade passa, sondando sua relação direta como o modo de vida dos indivíduos. Esses seriam alguns pontos, com certeza haverá outros. No cotidiano de uma formação em Soma, porém, esta confluência de pontos ocorre através de projetos comuns de pensamento e prática no cotidiano do Brancaleone, tanto formando pontos de unidade quanto abrindo novas vertentes de reflexão e ação: a Soma é uma obra sempre aberta ao presente, cotidianamente recriada de acordo com as condições sociais nas quais está inscrita.

Não temos programas, aulas ou seminários, mesmo que haja uma bibliografia de consensos e muita conversa; não temos roteiros, caminhos prontos ou horizontes a atingir, mesmo que haja um sentido comum e compartilhado; não há um prédio com uma sala, mesa e cadeira e um quadro negro. Não há certificado a não ser a certificação da cumpliciddade. O processo de formação em Soma é um projeto de convivência cotidiana, de troca de experiências. Um somaterapeuta em formação deve participar de tantos grupos de Soma quanto forem necessários para que ele não só vivencie como incorpore o conjunto de experiências que esta passagem proporciona. Há tanto diálogo quanto a necessidade de iniciativa própria: neste caminho, perceber suas próprias lacunas e então preenchê-las num processo que vai da auto-educação ao diálogo é fundamental. Um desejo pessoal e uma busca dialogada. Como é típico das prásticas de pedagogia libertária, a formação em Soma acontece pela via das trocas horizontais, onde quem deseja o conhecimento deve seguir pelos caminhos que levam à auto-educação dialogada.

Podemos dizer que a única condição geral para que alguém formalize o início de uma formação em Soma é esta: que tenha participado de um grupo de Soma e que queira continuar participando de grupos de Soma, aprofundando então a relação que mantém com esta prática, exatamente o que lhe possibilitará facilitar o laboratório a outras pessoas tempos depois, somaterapeuta. Primeiro como cliente, depois como assistente, depois como co-terapeuta para, enfim, após uma quantidade de grupos que varia conforme o envolvimento ou o desencadear destes encontros que vão surgindo no cotidiano da Soma e conforme as mudanças que este trajeto traz ao cotidiano, concluir uma formação. A formação consiste neste envolvimento progressivo, auto-educação compartilhada que nos leva do envolvimento como cliente ao envolvimento como somaterapeuta no processo de um grupo, de relativos estrangeiros a membros de um coletivo que desenvolve uma prática comum, com sentidos compartilhados.

Poderia seguir listando habilidades e desafios “técnicos” necessários a uma formação em Soma, e nisso mostrar a complexidade que é formar-se numa prática que caminha radicalmente entre os domínios habituais: será muito mais fácil fazer uma faculdade de psicologia ou um curso de pós-graduação em alguma modalidade tradicional de terapia do que fazer uma formação em Soma, isso porque estes domínios acadêmicos ou formais não propõem articulações que misturam ciências, políticas e artes num complexo e radical hibridismo, e também porque seguem um caminho de tutelas em sua pedagogia, onde o racionalismo burocrático suplanta toda forma de aprendizado experiencial. Mas estes ainda seriam desafios de ordem “técnica”, e numa formação em Soma os desafios desta ordem não são os principais.

Implicar-se como somaterapeuta é radicalmente diferente de implicar-se como psicoterapeuta, e aqui há o que penso ser o desafio mais fundamental na formação. Roberto Freire estava certo quando chamava a Soma de antipsicoterapia[7]. Em primeiro lugar, é preciso entender que a mais terapêutica das relações é propriamente a amizade, que uma terapia consiste menos de técnica e mais de capacidade de encontro entre as pessoas envolvidas. Elegemos a amizade à anarquista como modalidade terapêutica, e este pode ser o principal motivo de chamarmos a Soma de uma terapia anarquista. Falar de formação em Soma, então, é falar da vivência desta amizade à anarquista nos grupos e no coletivo, o que está completamente fora de qualquer cronograma ou habilidade técnica, e que só requer encontros e uma longa preparação. De nada adiantará o domínio da técnica e da teoria se o somaterapeuta negligenciar que a capacidade para um encontro terapêutico é principalmente produzir mais vida de lado a lado. A vivência constantemente renovada em grupos de Soma, assim como a participação na dinâmica autogestionária do Brancaleone, esses são elementos que buscam trazer esta amizade à tona, fazer do formando não só um técnico em terapias, mas um amigo à anarquista. Em segundo lugar, se o trabalho de psicoterapeuta envolve certo comedimento, o somaterapeuta como antipsicoterapeuta será um entusiasta, um instigador do movimento e da criação. A própria amizade não pode ser definida sem seu caráter revolucionário, por ser aquele encontro que potencializa alternativas, amplifica afetos, liberta rebeldias, agencia estratégias. Toda a formação técnica só pode ser vista à luz desta amizade e deste entusiasmo tanto da parte daquele que está em formação quanto dos somaterapeutas mais antigos e participantes dos grupos.

No cotidiano da formação, então, é preciso articular muito mais do que livros, teorias e técnicas; é preciso mais do que estar sentado em frente a um quadro negro, absorvendo o que é dito por aqueles que detém um determinado saber: é preciso mais do que querer um diploma... é preciso articular um corpo que literalmente saiba movimentar-se no contexto da Soma: movimentar-se entre as teorias que lhe fornecem base, conhecer biologicamente a riqueza das experiências que as vivências proporcionam, viver os sentidos da autogestão e da amizade como rumos necessários a uma política do cotidiano, ter a liberdade como norte e entusiasmar-se com ela a cada nova possibilidade de vida, mover-se pela luta-dança da capoeira angola, deixar-se vadiar, tocar e cantar... Podemos dizer que a formação consiste no progressivo envolvimento com estes contextos todos, e que antes de um processo propriamente pedagógico, é uma longa preparação. Ninguém aprende o que é ser uma amigo à anarquista senão no florescimento e na vivência das amizades à anarquista.



[1] O termo protomutante foi cunhado por Thomas Hanna e posteriormente atualizado por Roberto Freire na caracterização do personagem Coiote, no romance homônimo. Ver: Thomas Hanna. Corpos em revolta (uma abertura para o pensamento somático), Rio de Janeiro, Edições Mundo Musical, 1972. & Roberto Freire. Coiote. São Paulo, Sol e Chuva, 1997.

[2] Ver O Tesão Pela Vida vol.1.

[3] Descrita no capítulo sobre maratonas de divulgação, na primeira parte deste livro.

[4] Neste ponto, indicaria especialmente as discussões de Michel Foucault sobre os “corpos dóceis” e as discussões de Gilles Deleuze e Félix Guattari sobre os “corpos-sem-órgãos”. Ver: Michel Foucault, Vigiar e Punir. Petrópolis, Editora Vozes, 2002 (terceira parte) & Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia Vol.3. Rio de Janeiro, Editora 34, 1996 (primeiro capítulo).

[5] Ver: Roberto Freire e Fausto Brito. Utopia e Paixão – A política do cotidiano. São Paulo, Editora Trigrama, 2001.

[6] Ver capítulo sobre cadeira quente na Soma, na primeira parte deste livro.

[7] Ver: Roberto Freire e Coletivo Brancaleone. O Tesão pela Vida Vol.1. São Paulo, Editora Francis, 2006 (primeiro capítulo).