21.9.07

cartograma#85 - sem título pt.1.

Fixo o relógio na parede do café: vinte e duas e trinta exato. No último camarote, ao fundo e à esquerda, junto com Mone, uma dose de café e outra de conhaque, abro o lacre do John Player Special preto, derradeiro desejo. É uma noite de pouco movimento, segunda-feira pós feriado, meia estação, baixa temporada e ainda esta chuva leve e insistente molhando de pingos os passantes e as calçadas. Café Trindade, no Centro antigo, um ponto de descanso. Temos bons motivos e uma longa noite pela frente.

O garçom serviu meu conhaque e voltou a uma das banquetas que margeiam o balcão, na entrada do café; daqui, sinto seu respirar sonolento. Demonstra um interesse vago nos últimos resultados do futebol que passam no Esporte do canal 10, a tevê ligada sem som. O outro, cara de dono do café, o ‘Doutor Trindade’, barba farta e grisalha, carecando, em pé atrás da caixa. Ele tem cara de alvi-negro, está sempre atento. Dois camarotes ocupados de quatro no total. A tiazinha comendo uma salada de frutas com sorvete de frutas, talvez a ceia da insônia; e o casalzinho romântico. Ele chegou primeiro e trouxe flores.

Fumo meu John Player enquanto começo a matar a morte. Junto dela, a minha Mone... loucos dias desde então. Pouso minha atenção nela, branco sobre branco, túnica e calça de linho, sandálias brancas, pernas cruzadas para fora da mesa. Fez os pés, sem esmalte, como eu gosto. Quando lhe telefonei durante a tarde, disse que raspara à brasileirinha. Veio cheirosa de perfumes e cremes. Quando a busquei em casa, no início da noite, tinha os cabelos castanhos molhados, e veio com uma bolsa pequena, um cacho de uvas e um baseado aceso. Ainda sinto seu cheiro daqui, depois de toda a muralha de baseados, cigarros, cafés e conhaques. Um perfume ágil que a deixa especialmente encantadora, mesmo que especialmente traiçoeira: entrou no carro e me deu um beijo de batom no canto da boca e logo outro bem marcado na lapela da camisa branca. À noite, como sempre, deve estar sem calcinha ou sutiã...

-Oi?

-Disse que depois vamos dançar.

-Sim.

-Ouvi comentários de um lugar ótimo. Boa música, boa cozinha, bom cardápio. Bebidas e chás. Quero te levar lá. Um grupo de amigos foi na semana passada e gostou, disse que o ambiente é ótimo e confortável, e que todos são muito gentis e inteligentes. É uma casa antiga atrás do Morro da Anunciação. Não tão difícil de chegar quanto aquela festa que fomos no sábado.

-Bom...(...)

-Amara também ligou. Queria estar conosco hoje de noite. Está de apartamento novo e disse que vai fazer um open house em breve, insistiu muito em nós dois. Parece que tem um deck ótimo no segundo andar, e o pôr-do-sol é lindo da piscina. É uma cobertura, mas ela disse que é bastante discreta. Prepara alguma coisa para a semana que vem, mas se quisermos visitá-la antes, disse que será ótimo retribuir nossa gentileza. Expliquei-lhe que tínhamos planos pra hoje.

-Sim, sim. (...)...ela liga?

-Liga. Disseram-me que a pista é sobre tatamis, ouviste? Que deixamos nossos calçados à porta de entrada e que podemos mesmo dançar à vontade, se quisermos. (...) Quando terminares este cigarro, vamos? Vou pedir a conta. Faremos o caminho da orla e assim sentiremos o cheiro do mar...

-Sim.

-O silêncio não combina com a hora da morte.

-Por quê?

-Porque não faz sentido. Os grandes finais sempre são ruidosos.

-Os finais de quê?

-De tudo. É a grande metáfora da vida.

-A grande metáfora de quê?

-Os grandes finais são ruidosos porque são a metáfora possível da morte.

-(...)

-A morte deve ser agitadíssima.

-Há mortes que acontecem no silêncio.

-Imagine a morte de um motoqueiro no trânsito. Senão juntasse todo aquele povo e fizesse todo aquele barulho, o que ela seria senão um tombo no asfalto? Não é que o povo seja sádico, é a morte que deve ser agitada.

-Há mortes que acontecem no silêncio.

-Nenhuma morte acontece em silêncio. Não há silêncio. É como gozar.

-Nem toda mulher goza gritando.

-Os homens gozam com o pau, não com o corpo. A mulher goza toda.

-E a morte?

-Uma geme ao morrer, não morre em silêncio.

-(...)

-Sem feminismos?

-Sem feminismos, por favor.

Conhecemos Mone numa casa de suíngue há três meses. Ela estava com um cara estranho, um troglodita quinze ou vinte anos mais novo que ela, faixa preta de karatê e psicotrópicos. Ela veio me dizer depois que estavam fazendo experiências com medicação. Mone controlava as receitas. Ele experimentava e depois escrevia tudo em um computador laptop. Era a onda deles. Disse que não trepavam, e acho que realmente não. Era o cara perfeito pra levar numa casa de suíngue. Naquela noite em que a conheci, trepei com ela de quatro por mais de quarenta minutos enquanto o karateca batia uma lenta punheta. Quando gozei e acendi um cigarro, ele veio me apertar a mão a agradecer por tudo com a mão toda suja de porra, -Sai fora! Até uma casa de suíngue tem limites. Tentei deixar pra ele a puta que eu tinha levado mas nem isso. Ela ainda teve que achar um velho careca que tinha deixado a esposa com um garotão todo tatuado, mas acabou que conseguiu extorquir duzentas pratas do velho... enquanto o velho arfava sob ela, tomamos junto duas doses de uísque. Depois, Mone escreveu o telefone dela com caneta BIC no meu pau: -Não fode mais ninguém. Me liga amanhã cedo.

Virou as costas, falou com o karateca e foram embora. Chamei a minha puta de volta, ela me pagou um misto-quente e umas cervejas e fomos pra casa. Gastamos vinte e cinco pratas no rango e nas cervejas, e a entrada da boate custava quinze pra cada. Com duzentos, a puta ainda levava cento e quarenta e cinco pratas pra casa. Era bom pra ela. Desliguei o celular e fodi a puta até amanhecer sobre três notas de cinqüenta mais o troco do lanche, incluisive moedas.

Liguei pra Mone no dia seguinte, às nove horas quase em ponto, de ressaca. A puta saíra às 8 pra levar o filho no colégio. Nos encontramos das seis às nove do dia seguinte, e desde então nos encontramos sempre e mais. Ela é louca: já fodemos em todos os lugares que freqüentamos, públicos e privados.

Beijou-me: -O beijo é o mais pornográfico dos atos públicos.

-Vamos, então?

-Sim.

-E depois?

-Depois, nem tão tarde, podemos dançar.

-(...)

- e depois quero massagear teu corpo todo.

-(...)

-E te comer na piscina.

Fixo o relógio na parede do café. Vinte e duas e quarenta e dois.

–Vamos?

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