22.6.09

Ocaso brasileiro

Ocaso brasileiro. Saio do calabouço de volta ao porão. O funcionário ainda me espera sentado ao lado da porta, o molho de chaves na mão. Não sei quanto do tempo cronológico passou e vejo meu relógio parado em curto-circuito. Não reencontro a esfinge na volta, tampouco procuro. Tenho os pulmões inflados e o coração crepita. O funcionário fecha a porta atrás de mim enquanto, mesmo na penumbra do porão, a claridade já queima algo nos meus olhos que lacrimejam. É que volto ao mundo dos de cima, volto ao mundo das Luzes. O funcionário ri. Subo em passos lentos uma outra escadaria que dá em uma parte desconhecida do prédio, tanto mais precária quanto consigo me lembrar. O funcionário aponta a porta de saída e acena.

Agradeço.

Saio à rua e é Brasil, companheiras e companheiros.

Um calafrio percorre meu corpo imediatamente meu corpo: minha intuição imediatamente me leva a um problema que será como um ponto cego para mim mesmo, o final de um beco que atualmente não tem saída. Caminho até em casa pelas ruas da cidade, subo as escadas do meu prédio e venho direto ao escritório: olhando a estante, até mesmo na literatura, compreendo o paradoxo da esfinge.

É que são poucos os brasileiros.

Acredito, sim, que a complexidade das modificações que estamos vivendo sugere um novo arranjo; esta nova duração, mosaico extremamente complexo de formações históricas que compõem isso que o novo vocabulário pode chamar de globalização, a vigência deste arranjo é cada vez mais difícil de negar. Nos campos da governança, do trabalho, da produção e do comércio, da guerra, da comunicação e da informação, das relações interpessoais... enfim, em todos os aspectos da nossa vida coletiva está colocado um limiar de mundialização, visível ou não.

Voltar do disparate e estar no Brasil coloca o problema do esforço que temos em conseguir incorporar nas nossas histórias e nas nossas críticas esta realidade tão cotidianamente pungente que é viver aqui, o território periférico dos mil Brasis. Como articular as peculiaridades das formações globais com as peculiaridades das formações de abrangência mais local para reinventar efetivamente uma história de durações múltiplas onde a globalização incide, mas as formações de abrangência local não perderam completamente seu valor?

Cada arranjo abrange o solo fértil que o acolhe, do nosso corpo à nossa casa, do nosso bairro e ao nosso mundo todo. História é tempo e espaço. Alguns arranjos já mandaram pessoas à Lua e sondas a Marte. O pensamento histórico e crítico atual parece vidrado demais no novo vocabulário da globalização, e nisso parece eliminar paulatinamente as diferenças locais quando do debate sobre que mundo é esse e como ele chegou a ser o que é. Alguns parecem tomados da vaidade de querer explicar tudo. Entendem o processo da globalização como uma troca de paradigma, e então permanecem centrados nas sucessões lineares e nas lógicas estruturais, justo na medida em que a nova suplanta a anterior e torna-se vigente. Permanece a análise da história dentro do registro do tempo cronológico, dos registros tradicionais de passado, presente e futuro em sucessão, e não são poucos que propõem, nem poucas as origens que são propostas para esta nova era.

Mas a globalização não é um novo paradigma que suplanta os anteriores, não é o presente único colocado sobre um passado que já não é mais. As novas modalidades de existência recolocam de forma completamente diferente os planos global e local, mas não podemos supor que, com esta entrada, arranjos anteriores deixem de atuar, que as durações deixem de ser múltiplas. O que temos com o novo arranjo globalizado é a entrada de mais uma lâmina de tempo no contexto das demais e não uma lâmina que neutraliza as demais; ela vem para incidir também, mas não incide só. Trata-se não só de analisar a constituição de cada uma das novas formações históricas, trabalho que já exige um fôlego surpreendente, mas de analisar o embate gerado na coexistência nada pacífica destas durações múltiplas, e que também diz respeito ao solo fértil onde este embate todo acontece. É também preciso estar atento às vigências locais, quase mínimas.

Em que medida o pensamento eurocêntrico ou americanóide pode ser traduzido fiel e literalmente para os contextos de degradação vividos nos territórios periféricos? Não será esse um outro movimento de colonização que nos fará permanecer fazendo também uma história e uma crítica de segunda ordem? Se as teorias são somente caixas de ferramentas, é preciso dizer que também os parafusos trocam de bitola quando cruzamos os oceanos ou passeamos pela via sul dos hemisférios. Concedam que, pelo menos, a miséria incide sempre nos jogos de forças.

Além disso, só aqui o Fenômeno joga no Timão.

Colonizado tardiamente e tendo dizimada a sua população indígena originária, essa substituída pelo desamparo da carne negra traficada da África, a curta história do Brasil oficial condensa mestiçagens e passagens diversas, e é na coexistência presente de todas elas e de seus efeitos que conseguiremos compreender alguma política entre nós. Se a história à tradicional propõe que os períodos se sucederam, deveremos imaginar que o colonialismo europeu capitaneado pelos portugueses, o Estado monarquista proclamado às margens do Ipiranga pelo mártir, falso libertador, a República emergente, os democratas, o ruralismo do café com leite e o nacionalismo do Brasil para ser amado ou deixado; que a ditadura dos milicos e o proto-comunismo, que o capitalismo das elites, o neoliberalismo de mercado, o ruralismo da soja e a social-democracia da era do palhaço Peri são períodos distintos dentro do contexto nacional, paradigmas distintos que inauguram novos Brasis.

Assim querem que seja.

Falsos.

Na minha opinião, cada qual destes períodos pode ser considerado um arranjo específico dentro da vigência da nossa história atual, e mesmo que algumas das características mais evidentes de cada qual dos arranjos ditos mais antigos possam estar abrandadas ou soterradas pela sedimentarização das demais, são todas elas misturadas que concorrem para a concretização deste lugar onde vivemos hoje. É preciso dizer que o coronelismo colonial ainda existe e que a lei da chibata vale em grande parte do sertão rural ou urbano. Ainda temos os Orleans e Bragança e sua porcentagem geral quando da escolha da modalidade de governo. Ainda temos súditos. Ainda temos os republicanos e os democratas. Temos barões, reis da soja e pelo menos um movimento social visível com causas abertamente nacionalistas. É preciso dizer que muitos dos ditadores de então ainda estão vivos, e que seus torturadores fiéis também estão. Às vezes, moram ao lado. Ainda temos proto-comunistas e até proto-anarquistas. Capitalistas, neoliberais e social-democratas, aos montes.

E também temos nosso mártir: Peri, falso libertador.

Em frente à minha casa, neste momento, uma criança de cerca de 12 anos opera uma pá, enchendo sacos de aninhagem com areia. Um senhor de idade leva os sacos escada acima para o que eu imagino seja uma reforma no prédio vizinho. O moleque ouve o funk do godô. São negros. Quem ainda tem a cara de pau de afirmar que a escravidão foi abolida pela princesa boazinha? Não haverá a vigência dos arranjos colonialistas nos estrangeiros que vem ao Brasil para foder as negrinhas em Copacabana, assim como os portugueses fodiam as indiazinhas no mato virgem? Em que medida teorias hegemonizantes conseguirão dar conta deste mosaico de localidades para além das circunstâncias tomadas como gerais que o arranjo globalizado inaugura? Poderá Foucault falar do que se passa no cotidiano do Oiapoque ao Chuí sem ser em termos genéricos, mesmo que estes termos genéricos tragam também problemas importantes, mesmo que genéricos?

Não é à toa que um dos principais sonhos da juventude brasileira, e certamente falo de uma juventude de classes média e alta, principalmente, pois entre os principais sonhos desta juventude está o sonho de passar um ou dois anos sabáticos a lavar pratos na Europa. Outros vivem a corrida estadunidense. A aristocracia tupiniquim ainda deseja ser européia ou gringa, e muitos apressam-se a fazer sua árvore genealógica atrás dos passaportes para o primeiro mundo. Até Iracema, esposa do palhaço Peri, já tem o seu. Nosso ex-ministro da cultura também. Mesmo que o intuito seja o ato nada autogestionado de lavar os pratos dos outros ou de ser tratado como latino de segunda mão, babam nos consulados a ponto de criar um charco. É preciso encarar um desafio local: mandem seus filhos lavar pratos no sertão nordestino por dois anos. Ou cavar poços, porque aqui a água é escassa enquanto, por lá, sobra o caviar.

Depois, se quiserem, mandem pro exterior.

Ou às favas.

Se as noções de macro ou micropolítica devem ser abolidas em função de movimentos molares ou moleculares, e isso certamente traduz diferentemente os critérios do Grande Poder, mesmo assim não podemos negligenciar as questões de abrangência de determinados arranjos. O tempo desloca-se à vontade, mas também percorre e agencia um espaço específico.

Por fim, apresso-me em dizer que nesta sessão não há apologia nenhuma à intifada tipicamente brasileira. As fronteiras nacionais são precárias em se tratando de proximidades. Seria melhor falar de localidades. E na abolição completa de todas as fronteiras que delimitam esta farsa que é o Estado nacional.

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