22.6.09

Reinados

Reinados. Dizem que são três os grandes reinados: o reinado humano, o reinado natural e o reinado técnico. O reinado humano seria o nosso próprio domínio, o reinado dos indivíduos, da cultura e das sociedades que eles constituem. O reinado da natureza, reinado de faunas e floras, de formas geológicas, variações climáticas, conjunturas solares e arranjos astrais: o domínio cósmico. No terceiro reinado, domínio das coisas, tudo aquilo que não é natural tampouco humano: objetos, utensílios e máquinas diversas, o reinado do fabricado.

Três reinados, vale dizer, sob uma Coroa unificada.

A Coroa antropocêntrica, continente.

Por ora, destacar os três reinados será de grande utilidade. Em primeiro lugar, para situar uma das divisões modernas que está cotidianamente presente no chão da vida, e que certamente está presente no interior das academias. Em segundo lugar, para apontar o evidente antropocentrismo vivido no âmbito do que chamam de reinado humano, antropocentrismo que em seu limite pode também ser confundido até com a embriaguez do narcisismo, aquela que gera alguns dos atos mais ardilosos e hostis. Depois, ainda para dizer que esta divisão de reinados pode não fazer sentido se evidenciarmos a complexa co-extensão do humano com os reinados natural e técnico como nossas porções inevitavelmente não-humanas de vida, porções com as quais vivemos na mais radical articulação.[i]

Humanidade, sim, mas natureza e técnica também.

É difícil distingüir os três reinados com o cabedal lingüístico que temos, mas o próprio senso comum já os tem tão bem distribuídos que, se não permanecemos muito tempo longe dele durante nossas pesquisas, ele também é material de análise cartográfica: o domínio humano somos nós, e todos parecem saber quem são os humanos; somos eu, você, eles, homens, mulheres, crianças, idosos. Ora, nós. O segundo domínio é o da natureza, e também não parece haver dificuldade em classificá-lo: falamos da fauna e da flora, das geologias, dos climas. Sobre o terceiro, o das coisas, tudo também parece tranqüilo. É quase ilógico não saber a diferença entre um homem ou uma mulher, um carvalho ou uma baleia e uma chave de fenda.

Imediatamente podemos objetar, porém, que há muito de natural no homem, que ele também faz parte da fauna; e que há muito de humano na técnica, issos porque uma chave de fenda é um invento humano; e que natureza e técnica viajam sempre abraçadas, nem que seja pelo motivo de que o invento é uma transformação de um material originário. É aí reside um problema às lógicas da modernidade. Não bastará fazer um estudo ou uma apresentação do diagrama puro e recortado, dos seus diferentes reinados, ainda que sob a mesma Coroa. É necessário um estudo aplicado à forma como este diagrama está distribuído co-extensivamente hoje em dia, e no nosso entorno, ou seja, sobre a forma como num coletivo co-existem humanos, natureza e técnicas.

A turbina de um avião precisa de um fluxo de ar que ela possa queimar, e ao queimá-lo ela também acelera o fluxo de ar. O ar que atravessa a turbina, circunstancialmente, faz tanto parte do ambiente quanto parte do motor; a turbina é uma máquina sofisticada ao ponto de conseguir realizar não somente seu trabalho mecânico, mas o trabalho mágico de acelerar os elementos. O motor é acionado pelo piloto, o que faz com que tanto a combustão quanto a velocidade e a densidade do ar estejam, naquele momento, intermediadas pela técnica e pela ação humana. Se a cadeia de relações permanecer coesa, vou de Porto Alegre ao Rio de Janeiro em pouco menos de duas. Mas quem voa este sistema complexo? O ar, a turbina ou o piloto?

Tomemos outro fato qualquer, um instante qualquer, e façamos o exercício de desdobrá-lo em seus diferentes reinados: como eu, aqui sentado à minha cadeira de escritório, digitando e editando esta proposta de tese na tela de meu computador, utilizando um software editor de texto, com os livros espalhados sobre o tampo da mesa de madeira, também os cigarros, os fósforos, um cinzeiro e marcadores de página. As palavras surgem no pensamento à medida que olho para a tela branca ou releio o que nela já redigi, e no surgimento do texto na tela também surge um certo sentido de argumento, voltam atualidades da memória, histórias e trechos de livros que posso apanhar ou não na estante aqui ao lado. Rumores de cúmplices, alguns conselhos já ouvidos, telefonemas. Traduzo tudo isso, pensamentos, memórias, conselhos, histórias, traduzo mecanicamente em pressão da ponta dos meus dedos sobre símbolos de um teclado com interface lingüística, e ele me permite criar palavras, tantas quanto eu quiser. E assim componho as frases numa tela plana que apresenta a futura página na forma em que ela será impressa. Tanto escrevo linearmente quanto recorto e colo diferentes parágrafos, e nisso a máquina já não é somente um suporte, mas uma tecnologia co-extensiva da minha inteligência. Formo o corpo do texto em interação com a eletrônica, e se ela não fala sem mim, já duvido conseguir falar sem ela: escrever à mão é um ato que já vai dolorido. Hoje chove e as janelas precisam ficar fechadas, o que interrompe o fluxo de ar e aumenta consideravelmente o calor do verão da capital gaúcha. Respiro, suo e bebo água. Quem escreve esta tese? Eu ou nós?

Quem voa é também quem escreve.

O coletivo.[ii] O dispositivo.[iii]

Nós somos parte dele. Natureza e técnica também.

Nós não reinamos dentro do coletivo.

Cada reinado entra em relação com os outros dois, e de cada relação particular surge uma entidade nova, entidade onde cultura e natureza ou corpo e máquina, por exemplo, encontram seus cruzamentos e mútuas dependências: co-extensões. Ocorrem não somente articulações, mas também trocas de essências no que seria uma grata promiscuidade entre os reinados aos olhos da epistemologia tradicional: é onde o homem vira máquina, onde a máquina fica meio orgânica e onde a natureza recria ecologias entre riquezas, extrações e dejetos. Mesmo que determinados pássaros não consigam cantar em gaiola, alguns peixes não sabem mais viver na água limpa. Cada entidade surgida entre os reinados seria, antes de uma entidade autônoma, uma entidade anômala, híbrida. Uma entidade que guarda ainda relativa autonomia, mas que encontra-se amarrada às suas relações diretas entre os reinados, e que também estabelece com os outros reinados trocas essenciais.

Temos híbridos de híbridos, anomalias de anomalias: cada entidade guarda em si um pouco de cada um dos reinados, sua proximidade e correlação são proporcionais ao nível de hibridização que apresentam, e ao tanto que conseguimos procurá-las. É possível que tarefas comuns sejam híbridos mais evidentes que uma erupção vulcânica, por exemplo, mas as recentes alterações do clima global mostram como a própria geologia incorpora-se e responde aos domínio humanos e técnicos, hibridiza-se num único agenciamento de calor e estafa. É porque tudo isso, os diferentes reinados, são somente modos de diferenciação da própria matéria, do corpo pleno da Terra[iv]: são a nossa cosmogonia mais geral.

A autonomia não é uma condição, mas uma tendência, um limite. Ela não acontece nos reinados, mas em cada entidade singular, em cada ator. Em qualquer dos três reinados dos quais estamos tratando, para quaisquer de suas entidades, a autonomia total é uma espécie de fora, de relatividade absoluta e, por isso, absurda. Devemos tratar a autonomia como uma tendência, a tendência de diferenciação e auto-regulação presente em cada entidade, cada qual apresentando gradientes de autonomia paradoxalmente de acordo com o nível de vinculação que estabelece com outras entidades, entre os reinados. O mais bem vinculado e, por isso, essencialmente cambiante é aquele que apresenta-se como o mais potencialmente autônomo.



[i] Ver: Bruno Latour. “Um coletivo de humanos e não-humanos” in A Esperança de Pandora. Bauru: EDUSC, 2001. p.201-246. & Bruno Latour. “Segunda divisão: as associações de humanos e não-humanos” in Políticas da Natureza – Como fazer ciência na democracia. Bauru: EDUSC, 2004. p.134-144.

[ii] Bruno Latour substitui a noção de sociedade pela noção de coletivo: a sociedade seria demasiadamente humana, e a preocupação de Latour é justamente incorporar à vida cotidiana os outros reinados, o natural e o técnico. O coletivo seria a anti-arquitetura deste encontro entre diferentes reinados, entre as redes como anti-arquitetura de hibridizações, agenciamentos, articulações e traduções. As repartições também querem trazer o nível de análise para o cotidiano, para preocupar-se também com uma teoria para o cotidiano, com traduções possíveis dentro do modo de vida existente. Ver: Bruno Latour. “Um coletivo de humanos e não-humanos” in A Esperança de Pandora. Bauru: EDUSC, 2001.

[iii] “Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos. Em segundo lugar, (...) entre estes elementos, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes. Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de formação que, em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante.” Ver: Michel Foucault. “Sobre a história da sexualidade” in Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999. p.244.

[iv] Ver: Gilles Deleuze & Félix Guattari. “28 de Novembro de 1947 – Como criar para si um Corpo-sem-Órgãos” in Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia Vol.3. op. cit. p.9-29.

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